Hoje é dia 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), uma em cada cinco meninas e um em cada 13 meninos são vítimas de abuso sexual antes dos 18 anos em todo o mundo. O dado, reproduzido e retirado da World Health Organization & UNICEF, corresponde a 2020, e alerta a urgência de tratar desse tema.
No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, divulgados em 2024, e dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em 2022, mais de 180 mil notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes foram registradas entre os anos de 2015 e 2021.
A região Sudeste é onde se concentra 40% dos casos, seguida do Nordeste (20%), Sul (15%), Centro-Oeste (15%) e Norte (10%). E é São Paulo o estado que lidera o ranking com 25% das notificações nacionais.
Todavia, estados como Acre e Roraima, que registram menos de 1% dos casos, não significam uma inexistência de fatos. Pelo contrário. As informações disponibilizadas, ou falta delas, indicam uma provável subnotificação por falta de acesso, estrutura e conscientização.
Neste sentido, campanhas como “Maio Laranja”, motivadas pelo 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, são fundamentais para essa reflexão, e também o mote para que hoje, em especial, o assunto seja ampliado.
Tabu, silêncio e os traumas invisíveis
Apesar de considerado desconfortável e muitas vezes evitado até em círculos familiares e profissionais, falar de abuso e de exploração sexual de crianças e adolescentes é a principal maneira de dar visibilidade, escuta e, principalmente, combater esse problema social. Afinal, na maioria das vezes, é dentro de casa que os abusos acontecem.
Segundo a psicóloga Márcia Mendes, especialista no atendimento de vítimas de violência sexual, mais de 80% dos casos de abuso sexual infantil acontecem no ambiente intrafamiliar. E mais de 90% dos casos não são sequer notificados.
Caxias do Sul não possui uma apresentação fechada e atualizada desse balanço. Todavia, segundo a conselheira tutelar da macrorregião 1 de Caxias do Sul e advogada Priscila Vilasboa de Abreu, em três meses, 128 crianças foram vítimas de abuso em Caxias do Sul. O dado correspondente ao primeiro trimestre de 2025 é referente a casos foram registrados no conselho tutelar da cidade e apresentado na tribuna da Câmara de Vereadores, durante a sessão desta quinta-feira (15).
Conforme o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinam), vinculado ao Ministério da Saúde, o RS registra, em média, 27 casos diários de violência contra crianças e adolescentes. Entretanto, apenas 10% dos casos de violência sexual são notificados.
As informações ainda dão conta que uma criança é estuprada a cada 3 horas no estado, sendo de 80% a 90% dos casos intrafamiliares, cometidos por pessoas próximas, como pais, padrastos e familiares.
“É pai, padrasto, tio, avô, amigo da família. Em muitos casos, a criança é silenciada duas vezes: pela violência e pela omissão de quem deveria protegê-la”, destaca.
Ela também aponta que não há marcas visíveis na maioria dos abusos, pois eles não envolvem necessariamente o ato sexual em si, mas comportamentos como mostrar vídeos pornográficos, pedir para a criança se despir, tocar de forma inapropriada ou usar linguagem sedutora.
“Tudo isso já é abuso. E o trauma, mesmo sem marcas físicas, é devastador”, alerta.
Crianças silenciadas podem se tornar adultos adoecidos
A psicóloga relata que atende majoritariamente mulheres adultas que foram abusadas na infância e nunca conseguiram falar sobre isso. Segundo ela, as vítimas chegam com queixas de depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), problemas nos relacionamentos, baixa autoestima crônica. E, quando aprofundadas as sessões, o trauma da infância aparece e mostra o que estava ali o tempo todo.
Já em homens, os impactos aparecem de forma distinta. Muitos desenvolvem vícios em álcool e outras drogas ou mesmo pornografia. A relação se dá como uma maneira de “anestesiar a dor”, segundo explica a especialista. Outros, no entanto, apresentam transtornos sérios, como depressão e ideação suicida.
E não trabalhar esses quadros, inclusive pelo fato de não falar do assunto, pode gerar, entre todos os problemas já elencados, uma falta de confiança que se reflete nas relações, na carreira, no convívio social. Afinal, há dificuldades em confiar no outro, ou até mesmo uma dependência emocional.
Além disso, um outro ponto importante apresentado pela especialista é o ciclo de repetição. Conforme ela, quando o trauma não é elaborado, ele se repete. A constatação é explicada pelo fato de que muitas mulheres que foram abusadas na infância, por exemplo, podem desenvolver relações abusivas na vida adulta.
O surgimento de doenças psicossomáticas e o impacto financeiro, pela incapacidade de desenvolver autonomia também são aspectos de atenção, já que são afetados diretamente por esses traumas.
“É o cérebro tentando economizar energia e buscando padrões já conhecidos, mesmo que nocivos”, explica Márcia, que reforça a necessidade de elaborar o trauma para quebrar o ciclo.
Por que é tão difícil falar sobre abuso sexual?
Falar sobre abuso sexual infantil é difícil por muitas razões, entre elas, a cultura do silêncio e o tabu que ainda envolve a sexualidade. Márcia cita Freud ao explicar que há temas, como sexo e dinheiro, que geram desconforto social.
“As pessoas se mexem na cadeira quando o assunto é esse. Tentam mudar de tema, evitam o olhar. Mas é preciso entender: falar sobre prevenção de abuso não é falar sobre sexualidade no sentido adulto, é proteção”, afirma a psicóloga.
Márcia, problematiza ainda o fato de que muitos pais sequer conversam com seus filhos sobre o que é um abuso. Neste sentido, identifica, em seu círculo de pacientes, o desconhecimento, já que muitos adultos só foram entender o que tinham sofrido muitos anos depois. Afinal, ninguém os ensinou que aquilo era errado.
Sinais de alerta
Os sinais que uma criança está sofrendo abuso nem sempre são claros, mas existem. Mudanças bruscas de comportamento, medo excessivo, isolamento, agressividade, comportamento sexualizado inadequado para a idade, regressão (voltar a fazer xixi na cama, por exemplo), relutância em estar perto de certas pessoas, ou desenhos com ênfase nas partes íntimas são alertas importantes.
Márcia aponta que esses são sinais que, se ignorados, podem custar caro. Por isso, é preciso que pais, professores e cuidadores estejam atentos. E, muitas vezes, é em ambientes externos que a criança se sente ouvida, como na escola, onde a criança encontra alguém que, de fato, a escute.
A importância do acolhimento
O acolhimento é parte essencial da prevenção e da recuperação. O trauma não é só o abuso, mas também não ser “acreditado”, não ser “ouvido”. Assim, quando a criança relata e o adulto a silencia, ela sofre dois traumas: o da violência e o da negligência.
É por isso que ela defende uma ação conjunta da sociedade. Já que, não são só os pais que devem ter esse cuidado e responsabilidade. Afinal, quando o agressor está dentro de casa, muitas vezes os pais são os próprios abusadores. Então, é a escola, os serviços públicos, os vizinhos e todo o entorno social que têm um papel nesse combate.
Márcia, no entanto, entende que é possível romper ciclos, apesar da dor e das marcas profundas. Todavia, isso exige coragem da vítima, para falar, e da sociedade, para ouvir e agir.
“É um trabalho de formiguinha, mas é possível. E começa com informação. Falar é o primeiro passo para proteger nossas crianças”, conclui Márcia.
A informação como principal ferramenta de combate ao abuso sexual
Diante do silenciamento das vítimas, tabu social e falhas nos mecanismos de cuidado, como falta de delegacias com profissionais especializados, entre outras carências para tratar essas demandas, está o papel dos demais agentes que atuam nas escolas, dos serviços de saúde e a própria ampliação de espaços e abordagens desse tema em toda a sociedade. Neste sentido, Márcia Mendes desenvolveu um projeto que visa colaborar com a abordagem deste tema.
O Protegendo Sonho é um projeto de prevenção, identificação e intervenção nos casos de abuso sexual infantil, composto por dois materiais lúdico-educativos:
- O livro “O Segredo da Floresta“, que aborda, por meio de metáforas e linguagem acessível, situações de risco, sentimentos e a importância da rede de proteção; e
- O jogo educativo “Trilha da Confiança“, que possibilita a escuta ativa da criança de forma leve e segura, promovendo o fortalecimento de vínculos, a prevenção e a identificação de sinais de abuso.
A ideia com os materiais é, acima de qualquer coisa, quebrar o silêncio do abuso infantil, oferecendo ferramentas práticas, baseadas em evidências, que ampliam o diálogo e a atuação protetiva com crianças.
Ambos materiais estão disponíveis para aquisição e podem ser adquiridos. Nas redes sociais da Márcia, em psicologamarciafernanda, é possível obter informações sobre os materiais bem como acompanhar o trabalho especializado da profissional.
E, lembre-se: se você conhece ou suspeita de um caso de abuso sexual infantil, denuncie. Disque 100. A ligação é gratuita e pode ser feita de forma anônima.