O Direito a reboque do fato social

A Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu a paternidade e maternidade socioafetivas dos patrões de uma idosa que viveu desde os quatro anos trabalhando em uma residência

Casal de idosos sentado em um banco à beira do lago, apreciando o pôr do sol.
Imagem: Freepik

A decisão abaixo já não é mais nova, mas, ainda assim, merece que a gente reflita sobre ela: a Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu a paternidade e a maternidade socioafetivas dos patrões de uma idosa que viveu desde os quatro anos trabalhando em uma residência de Porto Alegre.

O casal reconhecido como pai e mãe já é falecido; entretanto, eles passarão a figurar, nessa condição, no registro de nascimento da idosa que foi empregada na casa deles por quase toda vida. E, por corolário lógico, sendo reconhecida como filha, restam assegurados direitos sucessórios, isto é, direito à herança.

O mais curioso é que não foi ela que pleiteou esse reconhecimento. Foi o Ministério Público, um terceiro, um fenômeno inimaginável na época em que me formei, quando fui ensinada que ninguém pode pleitear em nome próprio direito alheio.

A decisão demonstra que o Direito, apensar de ser, a meu juízo – enquanto sinônimo necessário de justiça (o que não é justo é o não-Direito) – da natureza humana, pois cada um tem em seu coração uma compreensão do que não é justo, isto é, ínsita da condição humana, na vida em sociedade, ele adquire certa autonomia, mas anda a galope do fato social.

E o fato social importante que permitiu que a tal idosa fosse reconhecida como filha de seus patrões é que ela, tendo se criado dentro da casa deles, se institucionalizou, socioafetivamente, àquela família, ou seja, aquela virou a referência de família dela, ainda que ali trabalhasse como empregada doméstica.

Entendimento do Caso e a Atuação do Ministério Público

Conforme o Ministério Público do Trabalho no RS, o caso foi descoberto após uma denúncia de trabalho escravo doméstico. Entretanto, a investigação apontou exploração de trabalho doméstico. Nada obstante a esta constatação, a idosa se recusou a deixar o domicílio, porque ela se reconhecia como parte da família. Não se sentia, portanto, explorada.

A saída encontrada para a questão, justo na proteção da Idosa (em idade avançada), foi pleitear, então, na Justiça, o reconhecimento judicial dessa condição de “parte da família”, pela socioafetividade, ou seja, por um vínculo afetivo construído desde a infância.

Então, estamos diante de uma adoção póstuma de maior de 18 anos fundamentada em socioafetividade, o que, há alguns anos, em um Direito compreendido por regras, seria inimaginável, porque não existe nenhuma regra que assim permita. Existe apenas um princípio e uma vulnerabilidade a ser protegida. Se essa decisão vai transitar em julgado nestes termos, eu não sei. Mas que ela enseja reflexão, tenho certeza.