
Hannah Arendt, uma das mais destacadas filósofas políticas do Século XX, era alemã de origem judia. Nasceu em 1906, em Linden-Hanôver, e faleceu em 14 de outubro de 1975 em Nova Iorque-EUA.
Hannah foi aluna de Martin Heidegger (que integrou, por determinado período, o Partido Nazista Alemão), professor que a orientou em sua primeira tese doutoral; dizem que teve um caso com ele e romperam; que ela desenvolvia uma segunda tese e que Karl Jaspers (1883-1969), outro filósofo renomado, prosseguiu em sua orientação, até que ela, Hannah, foi impedida de prosseguir na Universidade, com a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, vindo a se refugiar nos Estados Unidos.
Sua orientação por Karl Jaspers – filósofo que se opunha ao nazismo, sobretudo, por ser pessoa de elevada sensibilidade moral – é algo impressionante e tem muito a nos dizer, independentemente de qualquer conteúdo de teses.
Por quê? Porque Hannah Arendt era ateia confessa, ao passo que Karl Jaspers era um existencialista cristão. Como esses dois conseguiram conviver, quando, na atualidade, as pessoas já não estão conseguindo sequer conversar, em tempos de antagonismos tão exacerbados. Compreenda.
Distanciando-se da Fenomenologia de Edmund Husserl, mas ainda seguindo do existencialismo cristão de Kierkegaard, Karl Jaspers, partindo dos exemplos de Sócrates e de Jesus, segundo o entendimento de que a existência é sofrimento, e fazendo a unificação da humanidade a finalidade histórica (momento de manifestação do que é humano e do ser da divindade na relação do homem com os outros homens), afirma que o homem é fundamentalmente mais do que ele sabe e pode saber acerca de si mesmo. Ser homem é fazer-se homem.
Jaspers, firme na fé Cristã, sustentava que a realidade não se cria a si própria (algo ou alguém a criou); antes, configura-se como um ser relativo a Deus. O homem encontra na transcendência a dádiva de sua própria liberdade. “Nós, homens, nunca nos bastamos”. Ser homem é ser livre e relativo a Deus. Se tudo desvanece, Deus existe.
No exercício de sua liberdade, o homem pode conformar a sua própria existência e dar um sentido a ela, como se amolda a qualquer material. Porém, mesmo nesse exercício, o homem pode contar com a voz de Deus orientando os seus atos e julgamentos. Trata-se de um juízo pelo qual o homem julga a si próprio, comportando sempre o risco de se enganar e de nunca ser definitivo; antes, revela-se ambíguo, requerendo a intervenção judicativa dos outros (“será que eu estou certo?”).
Segundo Jaspers, cada homem deve se mostrar humilde quanto ao juízo que faz de si próprio e sobre suas certezas instantâneas, preservando-se de qualquer fanatismo: “Nem a mais pura clareza do caminho entrevisto do ditame divino deverá conduzir a certeza íntima de que essa é a única (certeza) verdadeira para todos”. No entendimento de Jaspers, Deus age por meio das decisões livres individuais, porém, por outro lado, os ditames de Deus não são nunca uma posse, mas sempre uma orientação.
Assim, Jarpers mostra como a liberdade individual, apesar de poder ser guiada por Deus, nunca pode conferir ao homem a soberba da certeza divina: se é verdade que, na sua relação com Deus, o homem encontra a fonte da liberdade, não é menos certo que essa relação justifica a humanidade de cada homem na sua descoberta dos hieróglifos (escritos sagrados) da transcendência, relativizando as suas certezas e justificando a sua aceitação das “certezas” dos outros”, segundo um modelo de igual flexibilidade de aceitação pelos outros de nossas “certezas”.
Como um cristão conseguiu orientar e conviver com uma ateia, mesmo ao nível estritamente científico?
É bem verdade que Hannah Arendt se dedicou muito especialmente a examinar de onde proveio o ódio pelos judeus e as origens do Totalitarismo. Mas vejam acima que o próprio Jaspers nos dá pistas sólidas de como isso foi possível.
Karl Jaspers se tornou, pelo seu pensamento, o filósofo das liberdades pluralistas e do relativismo igualitário da opinião de todos os homens, de acordo com um modelo social que preconiza a tolerância e a humildade de quem, não tendo a segurança da certeza, sabe que nunca pode ter certeza das próprias ideias (socraticamente falando, “só sei que nada sei”, ou, em termos cartesianos, admitindo que o começo do pensamento racionalista começa com a dúvida).
Além disso, para Jaspers, a atividade científica, antes de mais nada, caracteriza-se pela sua consciência metodológica dos limites de validade da ciência (daquilo que o homem pode provar). Ademais, a atitude científica se traduz pela pronta disposição do investigador em aceitar toda a crítica às suas opiniões. A ciência também precisa ser humilde, sabendo que ela tem um conhecimento precário e nunca definitivo.
Então, já podemos compreender de que maneira foi possível o convívio entre esses dois, Jaspers e Arendt: humildade, tolerância e ciência dos limites do próprio conhecimento de parte a parte, uma boa receita para tempos de cólera em embates políticos, cuja centralidade já não é o bem comum, mas vencer o debate e, talvez, gritar mais alto.