Zygmunt Bauman foi um sociólogo e filósofo polonês, filho de judeus, que se tornou professor emérito de Sociologia das Universidades de Leeds e Varsóvia. Ele, com seus familiares, se transferiram para a União Soviética, após a invasão e anexação da Polônia (1939) por forças alemãs e soviéticas (então aliadas nos termos do “Tratado Germano-Soviético”).
Não quero aqui abordar as questões políticas que envolvem a vida de Bauman, pois não concordo com elas e, também, porque elas não interessam ao aspecto sobre o qual quero escrever. O que precisamente me interessa é o entendimento dele de que, nos tempos atuais, as relações entre os indivíduos nas sociedades tendem a ser menos frequentes e menos duradouras. Tanto é que uma de suas frases célebres poderia ser traduzida, na Língua Portuguesa, como “relações que escorrem pelo vão dos dedos”, como ele discorre sua obra denominada “Amor Líquido”.
O uso, por Bauman, do termo “líquido”, bem examinado, é uma poderosa metáfora da vida contemporânea, para dizer que ela é móvel, fluída, maleável, amorfa, sem um centro de gravidade e difícil de conter e predizer.
Em apertada síntese e em essência, a modernidade líquida de Bauman é uma forma de vida que vive em um contínuo e incessante remodelar do mundo moderno de maneiras imprevisíveis, incertas e bombardeadas por crescentes níveis de risco.
Trazendo essa ideia de Bauman para o âmbito da Justiça (leia-se, do Poder Judiciário) – e era aqui que eu queria chegar -, sinto que a liquidez também chegou aos Juízes e aos Tribunais, com decisões prenhes de achismos e decisionismos, que quase nos permitem dizer que são decisões móveis, fluídas, maleáveis, amorfas, sem um centro de gravidade e difíceis de conter e predizer.
“É causa ganha, doutor?”, indaga o cliente, e o advogado só tem uma resposta, se quiser ser honesto: “Depende”. Depende de qual juiz vai decidir; depende de em que Câmara ou Turma cair o recurso; depende a que Ministro do STJ e do STF o Recurso Especial ou o Recurso Extraordinário for distribuído.
Não sou positivista e nem acho que a lei formal, apenas pelo fato de ser lei escrita, predada e formal, contém em si a verdade e justiça inteira, muito menos do caso concreto e suas peculiares circunstânciais. Portanto, não compartilho da ideia de que o juiz, aos moldes oitocentista, deve, hoje, se preocupar em ser apenas ser a boca que expressa a palavra da lei (a serviço estrito do legislador), incumbindo-lhe, sim, um exercício de interpretação da lei – e até, excepcionalmente afastar a sua aplicação, à vista do caso concreto, se a lei do Estado-Legislador ou Executivo não estiver de harmonia com os valores e os princípios superiores da humanidade e da justiça que, em boa verdade, são o que dão real sustentação, legitimidade e validade a um sistema normativo jurídico a meu ver.
Porém, observo que está havendo aí dois grandes problemas. Primeiro, que juízos individuais acerca dos valores e dos princípios superiores da humanidade e da justiça têm sido sobremodo influenciados por ideologias que os julgadores perfilam; segundo, a pauta política partidária de predileção do julgador, felizmente não todos, mas uma parte deles, tem orientado e encaminhado a solução ou a prestação jurisdicional. Temos provas diárias disso via meios de comunicação cada vez mais rápidos. As decisões saem na mídia tão logo publicadas. Sinais dos tempos.
E nem quero falar da liquidez oriunda do próprio sistema recursal (defere liminar, caça liminar, reforma a decisão para restaurar a liminar e caça de novo a liminar, e sempre há aquele que pode acertar ou errar por último). O fato é que estamos vivendo um momento de insegurança jurídica – e a segurança jurídica é da essência das relações sociais – que não tinha experimentado em mais de 33 anos de experiência jurídica.
Vou dar um exemplo: o Poder Judiciário vive deferindo liminar para compelir o Poder Público (no que se incluem todos os entes que integram a nossa Federação, ou seja, a União, os estados, o Distrito Federal e os Municípios) a fornecerem às pessoas medicamentos, tratamentos médicos, internações hospitalares etc., que elas, pela sua condição socioeconômica ou hipossuficiência, não podem por si custear. Tudo a favor. Tudo isso independente de processo licitatório ou de previsão orçamentária.
É o que doutrinariamente se discute como “judicialização da saúde”: a Justiça na omissão do ente público, se substitui e diz onde, o quanto e com quem o dinheiro público deve ser gasto, em preservação a direitos fundamentais que, no Estado Democrático e Social de Direito, implicam respeito, proteção e promoção.
Inclusive, recentemente, eu li uma jurisprudência em que, uma mulher de 37 anos, com problemas de reprodutivos em decorrência de endometriose acentuada, obteve junto a Justiça o direito de se submeter à fertilização assistida (in vitro, mais conhecida como bebê de proveta), incluindo todo o tratamento preparatório, até a sua finalização, a custas do Município e do Estado.
Para assim decidir, o juiz invocou “precedentes” do STJ e do STF que têm reconhecido a saúde reprodutiva como um direito social fundamental e que, portanto, cabe ao Poder Público assegurar às pessoas hipossuficientes, por meio de políticas públicas eficazes e aptas, os tratamentos necessários ao seu restabelecimento e manutenção, quando prescritos por profissionais médicos.
Ora bem, estamos enfrentando uma Pandemia há mais de ano, e muitas das mortes decorrentes de contaminação por Covid 19 não ocorreram só pela doença em si, mas pela falta de tratamento adequado, pois os pacientes deveriam estar sendo tratados em UTIs, com tratamento intensivo, onde poderiam encontrar uma chance de sobreviver; porém, morreram na fila de espera, justamente porque o Poder Público não assegurou às pessoas hipossuficientes, por meio de políticas públicas eficazes e aptas a promover os tratamentos necessários para conservação de suas vidas, que enfrentaram uma sentença de morte sem direito de defesa.
Nenhum de nós está livre deste mesmo fim. E muitos ainda estão se socorrendo do Poder Judiciário para que, invocando os mesmos precedentes de Cortes Superiores, nos assegure uma chance de viver. Porém, agora, aqueles que eram os fundamentos para a judicialização da saúde, não valem mais. Um exemplo disso está em decisão recente do TJRS de 11/03/2021, replicando outras e também de outros Tribunais, negando tutela de urgência a paciente com Covid 19, que procurou a justiça justamente para tratamento da doença.
Lendo a decisão, o Desembargador (cujo nome não importa, porque sequer está em questão), disse que o fazia com profunda tristeza e angústia, mas que Judiciário, no presente momento, não tem o poder de modificar a realidade fática da grave situação que se instaurou no país e que, infelizmente, salvo algum milagre, estava por ficar ainda pior nos próximos dias, o que não é desarrazoado, mas antagônico ao que sempre fizeram e fundamentaram, no tópico, decisões sobre o tema,
E aqui aparece, de algum modo, a Justiça líquida (fluída, incerta e difícil de predizer), porque, quando alguém imaginaria que o Judiciário – que sempre amparou as pessoas em matéria de direito à saúde – não fosse adotar uma postura tendente a salvar uma vida; não era de se esperar que, não havendo UTI suficiente, alguma medida paliativa fosse adotada na salvaguarda de uma vida humana?
Pessoalmente, eu gostaria muito que o Poder Judiciário, especialmente o Tribunal Constitucional – híbrido (a maioria já não é juiz de carreira, mas de indicação política e, por isso, sempre tendo suas decisões mais suscetíveis de serem avaliadas como de cunho político ou, por assim dizer, de um certo viés político, pelo modo de investidura – não tenha nenhuma misericórdia em cominar imediatas obrigações de fazer ao Poder Púbico e de responsabilizar, pessoalmente, os agentes públicos que se omitiram e foram irresponsáveis na condução de falta de medicamentos, oxigênio, anestésicos e aparato mínimo de intubação, UTIs enfim, postura que custou tantas vidas humanas.
O que não faltam são legitimados a provocar a jurisdição para tanto. Espero que não sejam omissos. Hora de arregaçar de mangas de forma contundente e sem trégua neste propósito.
Lamentar já se tornou absolutamente insuficiente e falacioso. O tempo é de agir, e não de fluidez.