CUIDAR EM LIBERDADE

Sustentar a Luta Antimanicomial no Brasil, um desafio coletivo

Formação conservadora das escolas médicas e de enfermagem e o conservadorismo de base religiosa são alguns dos principais desafios

Entrega de carteiras de trabalho para participantes do programa De Braços Abertos em 2014, no Município de São Paulo. Imagem Reprodução Portal Jovem Pan.
Entrega de carteiras de trabalho para participantes do programa De Braços Abertos em 2014, no Município de São Paulo. Imagem Reprodução Portal Jovem Pan.

O manicômio destrói a capacidade de desejar.” A frase do sanitarista Emerson Mehry, referência na luta antimanicomial no Brasil, sintetiza décadas de embate em torno de um modelo de cuidado em saúde mental que privilegie a liberdade, o afeto e a dignidade. Médico de formação e militante histórico da reforma psiquiátrica brasileira, Emerson defende que os maiores avanços vieram da aposta em redes comunitárias de cuidado, e não na institucionalização da loucura.

Segundo ele, os marcos mais significativos da luta antimanicomial não foram apenas o fechamento de hospitais psiquiátricos, mas a criação de estratégias que permitiram a reconstrução do desejo e da autonomia em sujeitos historicamente excluídos. “Cuidar em liberdade” é mais do que um lema: é uma alternativa concreta e comprovadamente eficaz ao encarceramento dos corpos e das subjetividades.

No entanto, apesar dos avanços, Mehry alerta para retrocessos significativos. Um dos principais entraves, aponta, está na formação conservadora das escolas médicas e de enfermagem, que seguem perpetuando uma visão medicalizante, centrada na internação e no controle, ainda que o sistema legal e as políticas públicas caminhem na direção contrária.

Outro fator de preocupação crescente, segundo ele, é o fortalecimento de um conservadorismo de base religiosa que influencia diretamente políticas públicas por meio do financiamento de comunidades terapêuticas. Para Mehry, essas instituições operam como formas contemporâneas de aprisionamento, muitas vezes travestidas de cuidado, mas sem o suporte técnico e afetivo necessário à reconstrução subjetiva das pessoas.

A saúde como mercadoria

Embora a Constituição de 1988 tenha avançado ao definir o SUS como sistema público, a redação final acabou permitindo brechas que facilitaram a entrada de interesses de mercado no setor. Essa transformação tem implicações profundas.

“As pessoas passaram a consumir saúde como um produto: querem exames, remédios, internações. A saúde deixou de ser entendida como cuidado, vínculo, projeto coletivo”, lamenta.

Segundo ele, esse modelo é reforçado pela mídia e pelo imaginário social, que frequentemente retratam o serviço público como ineficaz, enquanto exaltam práticas e instituições privadas como ideais. Essa lógica, argumenta, desconstrói a imagem da saúde como bem comum e fomenta o sentimento de abandono por parte da população.

Redes enfraquecidas, famílias desamparadas

Mehry relembra as experiências exitosas que marcaram a virada dos anos 1990 para os 2000, como o programa “De Braços Abertos” (durante a gestão Haddad em São Paulo), que demonstrou que o cuidado em liberdade é viável e eficaz, já que o foco estava na reconstrução de vínculos com a comunidade e no apoio às famílias, elementos centrais para o sucesso do tratamento.

Entretanto, essas políticas, por serem frágeis do ponto de vista institucional, têm sido alvo de desmonte por administrações conservadoras. E esse desmonte tem impacto direto nas famílias, que, sem apoio, voltam a ver na internação a única solução para lidar com um parente em sofrimento psíquico.

“A gente não conseguiu proteger essas políticas com leis robustas. Quando muda o governo, as políticas morrem”. E, com isso, o que muitas vezes se deseja é sumir com quem sofre. Não há mais rede para cuidar junto, e o sofrimento vira problema individual”, explica.

Caminhos para o futuro para além do Brasil

Questionado sobre possíveis estratégias para enfrentar esse cenário, Mehry é direto:

“Não precisamos reinventar a roda. Nós já fizemos, temos experiências de sucesso. O difícil é neutralizar as forças conservadoras que mandam na cabeça das pessoas”, conclui.

Para ele, é preciso investir novamente em políticas públicas sólidas, formar profissionais comprometidos com o cuidado em liberdade e fortalecer o diálogo com a sociedade para reconstruir o entendimento de que a saúde é um direito coletivo, não um privilégio individual.
A luta antimanicomial, portanto, continua. E, como lembra Mehry, ela só se sustenta se for coletiva, afetiva e radicalmente comprometida com a vida em sua diversidade.