Cuidado em liberdade. Luta antimanicomial. Redução de danos. Em todo o Brasil esses temas ecoaram por conta das inúmeras atividades promovidas e manifestos feitos pelos mais diversos grupos e indivíduos. Todos motivados pela celebração e memória do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio. Em Caxias do Sul não foi diferente.
Além de todas as atividades promovidas por organizações públicas e privadas, por agentes de sociedade civil ou institucional, o Fórum Gaúcho de Saúde Mental – Núcleo Serra Gaúcha, reativado neste ano, promoveu a 4ª edição do Evento “Nós Louc@s” e a segunda edição do evento “SUSpira”, que ofereceu uma extensa e diversificada programação com vista na visibilidade à Luta Antimanicomial.
E entre as tantas mesas de debates propostas, a redução de danos foi trazida em uma das oportunidades como tema principal, assim como resgatada em outras situações dentro da programação por meio das falas daqueles que atuam nesta rede de cuidado em liberdade das pessoas em sofrimento mental.
Reduzir danos: uma estratégia política
Redução de Danos (RD) é um conjunto de estratégias que visa minimizar os danos causados
pelo uso de diferentes drogas, sem necessariamente ter de se abster do seu uso, a menos que o próprio usuário o deseje. A definição, facilmente encontrada em publicações de cunho acadêmico, e não, também pode ser colocada de outras maneiras. E, por mais prática que ela seja, não apresenta um fazer pronto, já que é um cuidado feito coletivamente, cujas ações aplicadas dependerão também de quem recebe o cuidado, e tudo é iniciado a partir de um encontro atento que deve, acima de tudo, ouvir.
A psicóloga, pesquisadora e pós-doutora especialista em saúde pública, Marta Conte, em sua fala na mesa “Redução de Danos”, explica que, com a ideia de saúde coletiva, nos anos 70, se desenvolveu um conhecimento de que a saúde de um interfere na saúde do outro. Assim, ficou a concepção de que a saúde é social, da mesma forma como o conceito de doença também é uma construção social. A criação do SUS e a leitura que se fez desse sistema também influenciaram, assim como a política de saúde mental, por volta dos anos 2000, que coloca a redução de danos no centro como uma diretriz de trabalho.
Marta destaca ainda a importância da Política Nacional de Humanização (PNH) e da redução de danos no SUS, que visam garantir acesso universal à saúde, não apenas como ausência de doença, mas como qualidade de vida, envolvendo diversas dimensões como moradia, educação e segurança alimentar. Ela ainda pontua a clínica ampliada, com cuidado compartilhado entre profissionais, gestores e usuários, respeitando a autonomia e a cidadania.
A redução de danos enfrenta dificuldades devido a preconceitos e resistências, especialmente em relação ao uso de “drogas”. A psicóloga enfatiza a necessidade de integração das políticas públicas e mais investimentos na atenção básica e nas ações de rua para diminuir vulnerabilidades sociais e promover a inclusão e o acesso aos direitos fundamentais.
“Quando uma política facilita o acesso, ela está fazendo justiça. Mas quando ela é retirada, e ela é de extrema necessidade aos vulneráveis, a gestão incrementa as vulnerabilidades sociais quando isso acontece. E a gente se ampara na redução de danos para isso: diminuir as vulnerabilidades e estar ao lados das pessoas nessa construção da cidadania. As pessoas precisam ter o que comer, ter onde dormir, para poder pensar nos sonhos que elas deixaram para trás, nas coisas que elas querem conquistar, nos laços que elas querem manter ou recuperar nas suas vidas”, enfatiza Marta ao destacar que a redução de danos enxerga todos os atravessamentos socioeconômicos, inclusive, que constituem a vida das pessoas.
Redução de Danos: a escuta fundamental
O psicólogo, mestrando e especialista em psicanálise, Daniel Araújo dos Santos, que dividiu a mesa com Marta, trouxe questões práticas acerca dessa política de cuidado. Segundo ele, é fundamental compreender que ao mesmo tempo que se propõe pensar cuidados com quem tem problemas com o uso de substâncias, levantamos também a questão que nem todas as pessoas passam por este tipo de problema. Ou seja, nem sempre um uso de drogas será problemático.
Segundo Santos, quando se tira o foco da substância ou do sintoma e se passa esse foco para o sujeito, um dos grandes dispositivos que surge é a escuta, que terá um impacto imenso nessa relação. Afinal, uma escuta atenta àquilo que a pessoa está trazendo, seus desejos e necessidades permitirá compreendê-la para além do uso de drogas.
E é importante destacar aqui que a ênfase sobre o consumo de substâncias psicoativas, proibidas ou não, é uma problemática que atravessa gerações e que fazem parte da rotina de muitas pessoas em sofrimento mental.
Daniel, que já atuou por anos no serviço de Consultório de Rua de Caxias, relata que, muitas vezes, em experiências em campo, as drogas eram os menores problemas em relação a todas as situações vivenciadas por essas pessoas. Por isso a escuta atenta e respeitosa pode ter um efeito maior quando o que se busca é de fato auxiliar, e não julgar. E, sim, a escuta se mostra como uma das ferramentas da prática de um “redutor de danos”, já que é a partir disso que se constrói o melhor caminho de enfrentamento a um uso “abusivo” de drogas.
“O foco é que a pessoa possa ter melhor qualidade de vida, respeitando o desejo dessa pessoa, o que ela quer, o que ela consegue fazer dentro das suas possibilidades, e respeitando até o que se consegue oferecer. Não se trata de incentivar o uso de substâncias, mas não punir, inclusive nos serviços que servem para escutar e acolher para ajudar”, pontua o psicólogo.
Essa escuta, que deve partir da família ou de quem compunha a rede de apoio das pessoas em sofrimento mental, seja ou não por uso de substâncias, é, portanto, uma ferramenta fundamental para entender o que torna essa vida mais potente, com base naquilo que ela busca, e não naquilo que socialmente se espera.
Reduzir danos, ampliar a vida
Em outros debates, a redução de danos volta como uma aliada por meio das vozes de especialistas na área da saúde mental e luta antimanicomial, como na mesa “Oficina de Saúde, Trabalho e Geração de Renda: pop rua e suas potências”, conduzida por um dos idealizadores do FGSM Serra, Roque Jr., e a redutora de danos, Veridiana Farias Machado, que, há mais de 23 anos, atua como pesquisadora e trabalhadora do SUS (Sistema Único de Saúde) e SUAS (Sistema Único De Assistência Social) com a população em situação de rua.
Para Veridiana, a redução de danos é uma diretriz importante da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), mas que precisa ser ampliada para a atenção primária, já que ela é a possibilidade de construir com a pessoa que faz uso de drogas a partir das potências e não das doenças. Assim, ela não nega a abstinência, desde que seja uma necessidade ou desejo da pessoa que está sendo atendida.
Veridiana ainda contextualiza o surgimento das práticas de redução de danos no país de maneira importante por conta do contexto de HIV/AIDS, onde, pessoas que faziam uso de substâncias, passam acessar os locais de cena de uso e, junto desse mesmo público passam a construir coletivamente maneiras menos prejudiciais à saúde, como, por exemplo, evitando o compartilhamento de seringas, entre outras ações. E tudo isso por meio de uma escuta qualificada, atenta e ativa, sob o lema “nada sobre nós sem nós”.
Segundo ela, no entanto, a resistência à política de redução de danos existe e se dá inclusive porque a maioria das pessoas não acredita que esses sujeitos possam saber e ter conhecimento sobre si mesmos, que sabem reconhecer a sua dor.
“A redução de danos ainda é muito incompreendida no Brasil, que tem uma política proibicionista, e onde muita gente não entende que ela (redução de danos) possa organizar junto porque não acreditam na autonomia dessas pessoas, não acreditam que essas pessoas possam saber, ter o conhecimento sobre si mesmas, sobre seu uso, sobre questões que lhe competem”, destaca ela.
A conversa não acaba com essas falas, da mesma maneira que essa luta não se encerra ao fim das atividades promovidas pelo Fórum, aqui em Caxias, e por tantas outras iniciativas poderosas e valiosas aqui e em todo o território onde há gente. Porque, sim: onde há gente há desejos e há frustrações. A reflexão que fica como fomento para continuar, para além do 18 de maio, é pensar que toda a forma de vida merece ser cuidada e respeitada, pois “o que interessa, de fato, são as pessoas” (adaptação da frase do psicanalista Carl Jung).
Quer saber mais sobre redução de danos? O Centro de Convivência é de Lei é uma iniciativa da sociedade civil que atua na promoção da redução de riscos e danos, sociais e à saúde, associados à política de drogas. No site do coletivo é possível saber mais sobre a Redução de Danos, bem como as movimentações sobre essa política. Acesse!