Bento Gonçalves

MP investiga improbidade de ex-prefeito Guilherme Pasin em contratos milionários da prefeitura de Bento

Empresas contratadas em 2020 pelo ex-prefeito são alvo de suspeitas de ligações com esquema fraudulento, mas seguem prestando serviços

Operação Camilo reforça suspeitas sobre empresas que mantém contratos em Bento
Operação Camilo reforça suspeitas sobre empresas que mantém contratos em Bento

Denúncias envolvendo corrupção e mau uso de recursos públicos por gestores que se aproveitaram da flexibilização das regras para liberação de dinheiro e contratações sem licitação para praticar irregularidades estão sendo investigadas em todo o país. Em Bento Gonçalves, investigações do Ministério Público estadual (MP) apontam para suspeitas de que o ex-prefeito Guilherme Pasin (PP) tenha praticado atos de improbidade administrativa, em associação com empresas que supostamente formam um grupo criminoso responsável por crimes como fraudes em licitação, peculato, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro com atuação em cidades gaúchas.

As suspeitas foram reforçadas depois que um empresário do setor de fornecimento de mão-de-obra e uma empresa contratada na área da saúde em Bento Gonçalves foram citados em conversas interceptadas pela Polícia Federal (PF) ao longo de uma investigação que desbaratou um esquema de corrupção em Rio Pardo no ano passado. A reportagem teve acesso a um documento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que comprova a suspeita.

Em Bento Gonçalves, o inquérito civil do MP estadual, aberto em fevereiro para apurar denúncias recebidas por e-mail e informações contidas em reportagens do Portal Leouve publicadas em dezembro de 2020, já identificou indícios de irregularidades em processos de contratações milionárias da prefeitura de Bento Gonçalves celebradas sem licitação em 2020 e ligadas à oferta de mão-de-obra para serviços gerais e técnicos da área da saúde. As denúncias, que tratam dos contratos celebrados com as empresas MedSaúde e APL Apoio Logístico, foram objeto de reportagens publicadas em dezembro do ano passado no portal, que podem ser acessadas aqui e aqui. Juntos, os contratos com as duas empresas superam os R$ 40 milhões.

Contratos com as duas empresas somam mais de R$ 40 milhões

As duas empresas foram contratadas entre abril e junho do ano passado, ainda durante o governo de Pasin, que chegou a acumular a titularidade da secretaria de Saúde nos últimos seis meses de seu governo, e prestam serviços até hoje. O MP passou a investigar as contratações por algumas peculiaridades envolvendo as duas empresas, como suspensão e posterior inexigibilidade de licitação, não contratação da melhor proposta, suspeitas de superfaturamento e ligações não explicadas entre as empresas.

A investigação logo revelou similaridades com outras denúncias investigadas no Rio Grande do Sul desde o ano passado, e o MP local encontrou indícios de ligações das empresas com um grupo econômico envolvido na Operação Camilo, deflagrada em maio do ano passado para apurar denúncias de corrupção ativa e passiva, organização criminosa, lavagem de dinheiro, fraude a licitação e estelionato, que indiciou políticos, agentes públicos e empresários pelo desvio de pelo menos R$ 15 milhões dos cofres públicos em contratos na área da saúde do município de Rio Pardo e ocasionou a prisão de 15 suspeitos. O elo entre a APL e o grupo que, segundo a investigação estadual, usaria laranjas para garantir a aplicação dos golpes, seria Fernando De La Rue, sócio da APL e representante legal também da MedSaúde nas contratações com a prefeitura de Bento.

Operação Camilo reforça suspeitas sobre empresas que mantém contratos em Bento

De acordo com a Força Tarefa da Operação Camilo, formada pela PF, MP estadual e federal, Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas do Estado (TCE), o nome de De La Rue é citado mais de uma vez nas ligações telefônicas interceptadas pela polícia em referências ao pagamento de propina a agentes públicos. De La Rue não foi investigado na operação, e sua identificação não é confirmada oficialmente. Ele responde a outros processos e já havia enfrentado, nos anos 2000, denúncias contra ele e o então prefeito de Charqueadas, Jaime Guedes Silveira, acusado de desviar recursos da construção de um centro cultural na cidade.

As investigações da Força Tarefa durante a operação que apurou as fraudes em Rio Pardo também apresentaram inferências à MedSaúde como parte do esquema de desvio de recursos, com suposta atuação em outras cidades. Uma das conversas por áudio interceptadas indica que a empresa teria adulterado horas trabalhadas para superfaturar cobranças, provocando um prejuízo de quase R$ 500 mil à prefeitura de Santa Cruz do Sul, o que teria sido confirmado por uma sindicância interna, de acordo com a Justiça. A empresa não faz parte das investigações da Operação Camilo, mas aparece citada nas conversas interceptadas pela polícia.

Prefeitura prorroga contratos

Mesmo com todas as suspeitas que recaem sobre as duas empresas, a relação comercial com a administração pública não sofreu abalo. Desde 11 de janeiro deste ano, a APL, que responde a processos por irregularidades também em Bagé, está impedida pela Justiça de contratar com governos, em uma suspensão que dura até maio deste ano, o que, segundo entendimentos da Lei das Licitações, deveria impedir que a prefeitura celebrasse prorrogações do contrato após a punição. Em fevereiro, o atual prefeito de Bento Gonçalves prorrogou o contrato mais uma vez, desta vez até junho, somando mais R$ 8 milhões ao contrato original e contrariando a promessa do novo governo de realizar um novo processo licitatório. O contrato com a MedSaúde foi prorrogado em abril por até 180 dias, de acordo com o Diário Oficial Eletrônico de 31 de março, ainda que o aditamento não constasse no portal da transparência até esta quinta-feira, dia 15,

Conforme o Leouve revelou em dezembro do ano passado, a APL foi contratada depois que a prefeitura recusou contratar a empresa que apresentou a menor proposta na concorrência por dispensa de licitação, o que provocou as suspeitas do MP, pois a medida pode ferir o princípio da economicidade.

A contratação da MedSaúde em 2020 também foi feita sem licitação e chamou a atenção do MP. Isso porque a comissão de licitação da prefeitura de Bento desclassificou as outras duas empresas concorrentes – o Instituto de Saúde Santa Clara e a empresa Sander Serviços Terceirizado – na fase de credenciamento, por não terem cumprido uma norma burocrática de identificação do envelope com a proposta. As empresas apresentaram recurso porque o erro não pode ser consertado pelos representantes legais da empresa que participavam da concorrência. A contratação da empresa foi alvo de críticas e revisões desde sua celebração original, primeiro porque os valores apontados como pagamento para determinadas funções estavam superfaturados, depois porque um dos sócios da empresa tinha contrato com o município como coordenador da Unidade de Pronto Atendimento 24H; agora, pela ligação com a operação da Força Tarefa.

Entenda o caso

O contrato com a APL pôde ser celebrado com dispensa da licitação porque o Tribunal de Justiça do estado (TJRS) suspendeu em maio do ano passado o processo licitatório por divergências no edital quanto à exigência de comprovação de experiência prévia da empresa contratada na prestação do serviço. Como o contrato com a CCS se encerraria no mês seguinte e não havia interesse da prefeitura em renovar o compromisso, depois de impasses recorrentes entre a prefeitura, a empresa, os servidores terceirizados e o sindicato da categoria, a prefeitura alegou que não haveria tempo hábil para corrigir o processo licitatório e, assim, comprovou o caráter emergencial da manutenção dos serviços e a contratação não precisou seguir os ritos legais previstos em um processo licitatório.

O que causou estranheza foi que a prefeitura não contratou a empresa que ofereceu a melhor proposta, mas preferiu pagar cerca de R$ 1,5 milhão a mais para fechar com a APL, o que ocorreu em junho de 2020. A falta de uma explicação oficial e o prejuízo aos cofres públicos provocaram um questionamento do MP: a resposta da prefeitura para ter preterido a empresa que apresentou o menor preço foi que existiam conexões societárias entre a empresa que apresentou a menor proposta e a CCS. O expediente do MP estava paralisado desde julho, e agora será objeto do mesmo inquérito que investiga o contrato.

Mas foi uma coincidência entre os dois contratos – o da APL e o da MedSaúde – que apontou que algo pode estar errado: o sócio da APL, Fernando De La Rue, aparece como procurador da MedSaúde no documento assinado com a prefeitura de Bento. Ou seja, em dois meses, ele conquistou os principais contratos públicos do ano e construiu um relacionamento que resultou ao longo de 2020 no pagamento de cerca de R$ 25 milhões pelo município, sempre por dispensa de licitação, também por conta da emergência decretada pela pandemia do novo coronavírus. Até o momento, a conta está em R$ 43,2 milhões.

A ligação entre De La Rue e a MedSaúde com as investigações da Operação Camilo, exposta com as conversas e mensagens interceptadas com autorização da Justiça, reforçam as suspeitas de irregularidades. As investigações apontaram desdobramentos que indicam que o esquema pode ser bem maior do que apenas a fraude na saúde de Rio Pardo, com atuação em outras cidades gaúchas e até na capital do estado. As referências sobre De La Rue e a MedSaúde aparecem na investigação sobre o chamado “núcleo público” do esquema que prendeu o então prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros, reveladas em mensagens de áudio apreendidas em celulares de dois dos investigados, conforme consta no processo. Em um dos trechos, um dos interlocutores, identificado como um dos representantes das empresas envolvidas no esquema, afirma que um certo Fernando, a quem a justiça identifica sendo De La Rue, indica o valor a ser pago como propina para agentes públicos e cita supostas relações políticas com a prefeitura de Porto Alegre.

Trechos das conversas interceptadas pela polícia que fariam referências a De La Rue foram reproduzidas em decisão do TRF4

Uma das linhas de investigação aponta uma suposta atuação dele em parceria com Carlos Alberto Serba Varreira, secretário-geral do partido Solidariedade no estado, preso na Operação Camilo por ter sido gestor da Associação Brasileira de Assistência Social, Saúde e Inclusão (Abrassi), principal alvo da operação, e apontado como provável dono da maioria das empresas envolvidas no esquema. Os dois são alvo de outro processo que apura esquemas irregulares que envolvem dinheiro público, que corre na 5ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre.

Trecho da decisão de Thompson Flores Lenz mostra ligação entre De La Rue e empresas e pessoas ligadas ao esquemas

Em relação à empresa de saúde, a transcrição aponta um diálogo em que a MedSaúde é apontada por não estar rendendo muito dinheiro e revela que uma das ações praticadas para desviar o dinheiro público era adulterar o número de horas trabalhadas pelos médicos, o que teria sido confirmado por uma sindicância interna da prefeitura de Santa Cruz do Sul, que apurou um prejuízo de R$ 468 mil aos cofres da cidade em 2015 com a prática.
Todas estas informações foram confirmadas na sentença do desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que indeferiu o pedido de liberdade provisória de Carlos Alberto Serba Varreira e ajudou a manter a prisão dos envolvidos na Operação Camilo.

Superfaturamento

No caso da MedSaúde, a contratação já é investigada pelo MP desde 2020. No enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, a prefeitura contratou a empresa com dispensa de licitação para a terceirização de serviços de enfermeiros e técnicos de enfermagem por um valor acima dos praticados habitualmente. Neste contrato, a empresa receberia R$ 19,4 mil ao mês por enfermeiro contratado. O técnico em enfermagem demandaria o repasse de R$ 9,4 mil mensais à Med Saúde por profissional. O contrato entre a prefeitura e a prestadora de serviço não define a carga horária dos trabalhadores. A proposta de orçamento e o Diário Oficial também foram omissos neste item. No Portal Transparência da prefeitura de Bento Gonçalves, é possível verificar que a maioria dos técnicos em enfermagem concursados recebem salários brutos entre R$ 2,1 mil e R$ 3,5 mil, menos da metade do valor pago aos terceirizados.

Já os enfermeiros, igualmente no Portal Transparência do município, têm remunerações totais que, em maioria, variam entre R$ 5 mil e R$ 11 mil, chegando a patamares de vencimentos quatro vezes menores do que os pagos aos profissionais da terceirizada. As discrepâncias chegaram à Câmara de Vereadores, que solicitou explicações para o caso. O contrato da APL e a relação de Fernando De La Rue com a prefeitura também são objeto de um pedido de informações do Legislativo, ainda sem resposta. Na época, o então secretário da Saúde de Bento Gonçalves e hoje prefeito informou que os valores do contrato foram reduzidos de 9,4 mil ao mês para R$ 7,1 mil. Os enfermeiros tiveram redução de R$ 19,4 mil para R$ 13,8 mil, ainda em patamares superiores aos dos concursados municipais.

Depois de ter acesso a essas informações, o MP agora quer entender o que realmente ocorreu nas concorrências sem licitação realizadas em 2020 em Bento Gonçalves, quais foram as reais motivações para os encaminhamentos, saber se os fatos estão interligados entre si de alguma forma e revelar se Bento Gonçalves entra para as estatísticas da corrupção em tempos de pandemia ou se tudo não passa de uma sucessão de mal-entendidos e coincidências. Caso alguma irregularidade seja comprovada, o MP poderá denunciar o ex-prefeito Pasin por improbidade administrativa, uma vez que os contratos originais foram celebrados em 2020, último ano de seu mandato, e também o atual prefeito, que manteve as empresas trabalhando a partir de janeiro de 2021, prorrogando os contratos.