A grande crise sanitária que enfrentamos deixará suas marcas. Isso é inevitável. O que só o futuro dirá é quão profundas serão. O fenômeno do “fechamento de fronteiras” e a enxurrada de políticas nacionalistas já se acentuava na Europa em razão das fortes correntes migratórias e, especialmente, nos EUA, por conta de uma das principais plataformas que elegeu Donald Trump. Agora, com o “medo residual” que brotará da pandemia, o protecionismo tende a aumentar. Uma nova era, mesmo com a hiperconectividade, parece estar surgindo, com o rompimento de cadeias de fornecedores globais, busca da autossuficiência de produção e consequente recuo da globalização.
E há quem diga que tais tendências seriam responsáveis por desencadear uma segunda Guerra fria, desta feita tendo a China, de Xi Jinping, de um lado, concentrando boa parte da estrutura produtiva de bens de massa do planeta e, de outro, os EUA, de Donald Trump, propulsor do novo nacionalismo.
O livro de Thomas Friedman, jornalista americano que, em 2005, lançou “O Mundo é Plano”, projetou o avanço contínuo da globalização, catapultada por fenômenos como a conectividade em massa, a perda identitária das nações e a abertura de fronteiras. Friedman, todavia, não previu a catástrofe sanitária que estamos atravessando.
Em que pese o avanço do volume de transações do mundo entre 1990 e 2015, passando de US$ 3,5 a US$ 19 trilhões, fenômenos verificados no período da pandemia, com a falta de máscaras, respiradores e materiais hospitalares, deflagraram uma corrida pela autosuficiência. A solidariedade entre as nações foi jogada no lixo no período de pandemia. Isso foi constatado, por exemplo, no episódio de num carregamento de máscaras chinesas que a França reteve. Ele tinha como destino original a Itália e a Espanha e Emmanuel Macron, mesmo sendo um grande defensor da unidade do continente, deixou aflorar o egoísmo e pensou única e exclusivamente no seu povo. O governo Trump adotou prática ainda mais agressiva, comprando, em dinheiro e pagando um preço maior, na pista do aeroporto da China, carregamentos que tinham como destino a Europa. O Brasil não ficou de fora e também foi vítima da sede americana.
O Covid-19 calou as máquinas da indústria, esvaziou ruas, impediu que aeronaves decolassem, encheu hospitais no mundo inteiro e semeou mortes.
E veja-se que mesmo no prelúdio da globalização, em 1990, a divisão, na contramão do que se propunha, se verificava com a consolidação da separação da União Soviética, as divisões da Iugoslávia e da Checoslováquia, dentre outros países. Além disso, movimentos separatistas regionais crescem vertiginosamente, como ocorre na Espanha, com a Catalunha e o País Basco. Isso sem falar no Brexit, que tirou os ingleses da União Européia e consolidou um questionamento até então recôndito: a globalização fez, de fato, bem a todos?
Paralelamente a isso, a crise de 2008, a queda do padrão de vida da classe média, o desemprego, o aumento dos fluxos migratórios e o medo, com a valorização da pauta da segurança, acabou por redundar na eleição de vários governos populistas pelo mundo, dentre eles, o dos EUA e do Brasil.
Trump, aliás, influenciou diversos governos com a retomada do “America First (América Primeiro)” e do “América para os americanos”, com a implementação de políticas nacionalistas, protecionistas e anti-imigração. Nesse sentido, as empresas terão que se preparar para uma crescente intervenção do Estado, com a quebra da tradição liberal. Como afirma Ian Bremmer, Presidente do Eurasia Group, “Multinacionais que já enfrentam problemas em suas cadeias de fornecimento expostas vão ter de lidar também com interferência política crescente”. As empresas terão que diversificar a cadeia para reduzir a dependência de um país fornecedor. O fato é que o mundo não pode depender exclusivamente da China, pois, em períodos de exceção, o poder dos asiáticos alcança patamares que comprometem o equilíbrio de forças do planeta.
Mas se espera que o espírito que deflagrou o processo de globalização não morra. Problemas globais, como é o caso da pandemia, a poluição, a falta de acesso a alimentos, as pesquisas científicas na área da saúde e as novas tecnologias não podem ser pensados isoladamente, dentro das fronteiras de cada país. São problemas comuns e, como tal, precisam de soluções comunitárias e construídas pelo esforço compartilhado das nações.