Mulher de costas na praia, contemplando o mar ao amanhecer.
Imagem: Freepik

Acordou com a energia habitual. Pulou da cama enquanto o sol, ainda preguiçoso, não sabia se levantava ou não.

Olhou pelas janelas de vidro da casa, que davam para o morro coberto pela mata nativa de um lado e para o mar do outro.

Viver presta mesmo, pensou.

Olhou pros seus amores, o companheiro e o cachorro. Os dois dormindo felizes porque sabiam que ela estava ali, do lado deles, e que quando voltasse da praia ia encher os dois de carinho.

Aquela era a rotina que tinha escolhido. A vida, o lugar, as pessoas, o que estudava e o que pretendia fazer depois de terminar o curso no qual tanto se empenhava e era reconhecida por isso. Ficar mas também viajar e aprender outros idiomas, morar em outras praias, fazer novos amigos e nadar em outros mares. Talvez ter filhos. Andar pelo mundo pra reencontrar a família, mas sempre voltar.

Estava tudo ali, logo ali na frente, o amanhã e o depois de amanhã.

Suspirou de felicidade, repassando mentalmente tudo que ia fazer naquela

sexta-feira e no final de semana.

O calor do verão já tinha chego, a praia que tanto amava parecia um cartão postal sem

filtro, as amigas com quem iria encontrar, a trilha que tinha combinado de fazer, o filme que veria no cinema e a peça nova no teatro da universidade.

Na volta da praia ia passar na feira e comprar algumas coisas pro jantar na casa de alguém querido. Depois buscar o livro que chegou na livraria, pra sentir as páginas entre os dedos, deitada ao sol, enquanto o cachorro corria na praia deserta e que só eles sabiam como chegar.

Vai ser um dia e final de semana cheios, quase falou alto pra si mesma, enquanto pegava seu equipamento de natação pra aula que logo ia começar, num dos lugares que mais gostava no planeta: o mar.

Fechou a porta sem fazer barulho pra não acordar ninguém. Não olhou pra trás, sem saber que seria a última vez que veria seus amores, que faria esse caminho, e que nunca chegaria ao mar.

O cheiro da mata nativa e a expectativa de chegar à praia enchiam a manhã dela de pura e despretensiosa alegria. A alegria de quem tem a vida pela frente, de quem faz o que gosta, que tem sonhos e vive como se todos os dias fossem o último dia, sem arrependimentos, sem mais ou menos.

Foi quando, ao entrar na trilha, teve a vida roubada, com covardia e sem motivo, se é que exista algum motivo para matar alguém.

Ela não chegou ao mar, não conseguiu nadar, nem se despedir.

Ela não voltou pra casa, não foi na feira nem encontrou as amigas.

Ela foi única mas também foi mais uma. Mais uma mulher que teve a vida tirada por um homem.

Um homem que não conhecia, que não fazia parte da sua vida, que não tinha nada em comum com ela.

Um homem que na sua covardia não agrediu outro homem, mas sim uma mulher.

Um homem, que mesmo dizendo não se lembrar de nada do que fez, culpou vozes na cabeça que o mandaram matar aquela mulher.

A história dele pode ser mentira, mas as vozes que mandam os homens matar mulheres são reais. São as vozes do machismo, da brutalidade, da frustração, da raiva, do passado e da doença social.

São vozes de homens que não tem controle, perdidos na sua pequenez, tentando preencher seu vazio usurpando a vida, a felicidade e o corpo de uma mulher.

Que a vida de Catarina seja um legado, e sua morte um grito de BASTA que não pare de ecoar na nossa mente, pra quem sabe, um dia, tudo realmente mudar.

*Este é um conto ficcional, escrito com dor e respeito, em homenagem à vida de Catarina Kasten, que foi vítima de feminicídio na Trilha da Praia do Matadeiro em FlorianópolisSC, no dia 21 de Novembro de 2025