O PODER DA PRESENÇA

A ocupação de espaços como fator essencial no combate à discriminação racial; o protagonismo das mulheres negras em Caxias do Sul

Apesar do racismo e desigualdade de gênero, mulheres negras estão criando redes de apoio e colaborando para vencer barreiras

Presença negra e ocupação de espaços: representatividade importa. Foto: Reprodução Freepik.
Presença negra e ocupação de espaços: representatividade importa. Foto: Reprodução Freepik.

A ocupação de espaços por pessoas negras – seja no empreendedorismo, na política, na educação ou na mídia – vai além da representatividade: trata-se de uma estratégia fundamental no enfrentamento à discriminação racial. 

Ao conquistar visibilidade e voz em ambientes historicamente excludentes, esses indivíduos desafiam estereótipos, rompem barreiras estruturais e abrem caminhos para transformações sociais mais profundas. Promover essa presença ativa é, portanto, um passo decisivo rumo à equidade racial no Brasil.

Entre 2013 e 2023, o número de empreendedores negros (pessoas pretas ou pardas) passou de 12,8 milhões para 15,6 milhões, um aumento de 22%, superior aos 18% dos empreendedores brancos no mesmo período. A proporção de negros que empreendem também cresceu de 15,3% para 15,9% em relação à população negra total. 

Além disso, a pesquisa mostrou que houve aumento no nível educacional e na formalização, já que mais negros estão conseguindo sair da informalidade e contribuir para a Previdência.

No entanto, ainda há desafios, como o acesso limitado a crédito, baixa escolaridade, já que poucos possuem ensino superior, além de muitos se encontrarem instalados em locais de infraestrutura precária.

As mulheres negras, por sua vez, enfrentam desafios duplos: racismo e desigualdade de gênero. Apesar disso, várias mulheres negras estão criando redes de apoio e colaborando para vencer barreiras.

Reconhecimento, militância e a luta por equidade em Caxias do Sul

Advogada e presidente do Conselho Municipal da Comunidade Negra (Comune) de Caxias do Sul, Michele Xavier tem consolidado sua atuação na intersecção entre direito, militância antirracista e políticas públicas. À frente do Comune, ela articula ações que buscam garantir representatividade, orçamento e estrutura para fortalecer a pauta racial no município.

A advogada conta que a vivência pessoal marca sua trajetória política. Relata episódios de discriminação racial em relacionamentos e na universidade, como em outros ambientes onde muitas vezes não se percebe o racismo institucional, aquele enraizado que pede que não se foque ou que falem a palavra racismo, porque isso constrange as pessoas, ou mesmo colocando o militante no lugar de raivoso.

Com origem periférica e formação viabilizada por políticas públicas como o ProUni, Michele construiu uma trajetória jurídica voltada às demandas da população negra e das comunidades marginalizadas. Sua atuação é definida como uma “advocacia do bar”, isso porque tem como característica a relação próxima da realidade social das pessoas atendidas, distante do estereótipo tradicional da profissão.

Além disso, ao longo da conversa com a reportagem, reflete sobre a diferença entre o feminismo negro e o branco, destacando as barreiras específicas enfrentadas por mulheres negras. Aponta, ainda, as dificuldades enfrentadas por vítimas negras de violência doméstica, especialmente em relação ao acesso a transporte, atendimento jurídico e acolhimento institucional.

“’Mulher só não denuncia a violência doméstica hoje se ela não quiser’. Se eu sou uma mulher periférica, negra, tenho três filhos e não tenho emprego formal é outra situação. Até pra eu fazer um boletim de ocorrência eu vou ter que me deslocar lá no meu bairro onde eu moro, vou ter que ter passagem pra mim e pros meus filhos pra vir pro Centro. Eu vou ter que arrumar alguém pra cuidar dos meus filhos porque se eu chegar na Defensoria Pública com três, ou quatro filhos, eu já não vou ser atendida do mesmo jeito. Aí eu vou chegar lá e eu não faço ideia dos documentos que eu tenho que levar”, expõe a profissional, que identifica ainda outros atravessamentos que influenciam para esse cenário difícil, como a falta de informação, a limitação de horários dos serviços, o ambiente formal e intimidador, entre outros aspectos. Pontos que colaboram para a desistência das pessoas que se encontram sem apoio ou orientação.

Ela ainda problematiza questões do perfil do caxiense.

“Por exemplo, se eu chego para as pessoas e digo assim, Caxias do Sul é da fé e do trabalho e da imigração italiana, mas era uma terra vazia quando vieram para cá? Não era. Então, vamos… O que vocês acham de a gente trazer essa perspectiva de outras pessoas que construíram Caxias do Sul? Como é que era o nome de Caxias do Sul antes de ser nomeado Caxias do Sul? Campo dos Bugres. Por que Campo dos Bugres? Porque aqui tinha uma grande tribo indígena, a Caingang. A gente sabe tudo o que aconteceu. Mas por que não contou a história das outras pessoas que estavam aqui? Por que a gente não faz esse esforço todo para preservar também?”, questiona a militante.

Moda afro e empreendedorismo: estilista inaugura primeiro ateliê afro em Caxias do Sul

A estilista Jaqueline Silva comanda o primeiro ateliê de moda afro de Caxias do Sul, consolidando uma trajetória iniciada há cerca de dez anos com a criação da marca NêgaNagô. A marca surgiu da necessidade pessoal de Jaqueline por roupas que expressassem sua identidade, inspirada nas cores e tecidos trazidos por imigrantes senegaleses. Com formação em Direito, ela optou por seguir na área da moda, desenvolvendo peças afrocentradas e criando conexões com outras mulheres negras da cidade.

O ateliê, localizado na Galeria Átrio, funciona como espaço de produção e também de encontro, sendo frequentado por um público diverso. A estilista relata resistência inicial em feiras e espaços comerciais, marcada por olhares de estranhamento e questionamentos sobre sua origem, o que evidencia desafios estruturais enfrentados por mulheres negras empreendedoras na Serra Gaúcha. 

“A minha moda é afro. Ela é uma moda que conta uma história afro-centrada, mas é uma moda para todos. E ainda tem uma certa resistência. Em alguns lugares que eu vou, algumas feiras que eu participo, ainda tem uma resistência das pessoas, ainda tem aqueles olhares meio tortos, às vezes chegam, olham a costura, meio desconfiada. Mas é tu mesmo que faz?”, narra ela.

Conforme a estilista, as pessoas ainda perguntarem se ela é de Caxias, porque alegam que Jaqueline não tem cara de caxiense, ao que ela responde com outro questionamento “e qual é a cara do caxiense? Por que eu não tenho essa cara?”, conta. 

No entanto, apesar ser vista como uma pessoa que não é local, porque a moda é diferente daquilo que as pessoas estão habituadas a usarem, tem sido uma experiência fortalecedora. 

“Em todos os lugares que eu consigo ir, que eu talvez não tivesse entrado antes, de ter a NêgaNagô, sempre eu saio mais fortalecida e saio com mais vontade de continuar fazendo esse trabalho para que mais pessoas conheçam nossa cultura”, comenta.

A marca atende clientes dentro e fora do Rio Grande do Sul e participa de eventos em cidades como Antônio Prado, onde Jaqueline mantém parceria com coletivos locais. Além da atuação como empreendedora, ela preside o coletivo Rolê das Pretas, formado por 26 mulheres negras de Caxias do Sul. O grupo tem como foco o fortalecimento mútuo e a promoção do acesso de mulheres negras aos espaços de educação, trabalho e cultura. E, além disso, está aberto para a participação de mais mulheres. Basta encontrar Jaqueline nas redes sociais.

A profissional, que ingressou no ensino superior por meio de políticas públicas e afirma que a experiência acadêmica ampliou seu acesso a oportunidades profissionais, conta ainda que hoje, por meio do ateliê e do coletivo, desenvolve ações voltadas à valorização da cultura negra e à inclusão de mulheres negras nos espaços sociais e econômicos da cidade. A militância de Jaqueline só cresce, e é toda a sociedade que se beneficia disso.

Feira destaca o empreendedorismo de mulheres negras e imigrantes em Caxias do Sul

A 5ª edição da Feira de Mulheres Empreendedoras Negras e Imigrantes ocorre das 12h às 19h deste domingo (06), no Centro de Cultura Ordová. Foto: Arquivo Alessandra Pereira.

A cidade de Caxias do Sul recebe, no próximo domingo (6), a quinta edição da Feira de Mulheres Empreendedoras Negras e Imigrantes. O evento, promovido pelo Comitê de Igualdade Racial do grupo Mulheres do Brasil, acontece das 12h às 19h no Centro de Cultura Ordovás, no Teatro Valentim Lazzarotto. A feira reúne 20 empreendedoras que atuam em diferentes segmentos, como alimentação e artesanato.

As participantes são mulheres negras ou imigrantes negras, oriundas de países como Venezuela, Colômbia, Haiti e Senegal. A maioria concilia a atividade empreendedora com empregos formais, utilizando a feira como oportunidade de ampliar a renda e consolidar seus próprios negócios. O grupo também participa de formações continuadas oferecidas pelo comitê, com foco em áreas como produção, gestão financeira e aspectos burocráticos do empreendedorismo.

A organização do evento é voluntária e conta com apoio da Coordenadoria de Igualdade Racial do município, que cede o espaço de forma gratuita, conforme explica a organizadora e presidente do Comitê de Igualdade Racial das Mulheres do Brasil, Alessandra Pereira.

Segundo ela, o Comitê de Igualdade Racial faz um recorte de mulheres negras, daqui ou imigrantes negras, como haitianas, venezuelanas e colombianas, consideradas pardas, e por isso negras.

“A gente quer promover as mulheres, a gente quer que elas alcancem mais espaços, dominem mais momentos, sejam mais donas de si, então a gente promove o máximo possível de mulheres. No caso, o comitê que eu estou liderando no momento é um comitê racial para negros. Tem o comitê da saúde, tem o comitê que enfrenta a violência doméstica, tem o comitê da comunicação, tem outros comitês dentro do grupo Mulheres do Brasil, cada um com seu viés. Neste, a gente enfrenta o racismo e valoriza a identidade negra, então, por isso que a gente lida favorecendo a mulher negra, o máximo que a gente pode”, enfatiza Alessandra.

Neste sentido, as empreendedoras não precisam arcar com taxas de participação, e todo o valor arrecadado com as vendas permanece com elas. Além da feira organizada pelo comitê, essas mulheres também participam de outros eventos na cidade, muitas vezes mediante pagamento de taxas.

Duas empreendedoras que participaram das edições anteriores da feira já conseguiram abrir seus próprios espaços comerciais em Caxias do Sul, sendo vistas como referência para as demais participantes, caso da Jaqueline e sua marca NêgaNagô. Além dos dois eventos realizados ao ano, também se atua para facilitar a inserção das empreendedoras em outras feiras da cidade.

O Comitê de Igualdade Racial atua dentro do grupo Mulheres do Brasil com foco na valorização da identidade negra e no combate ao racismo estrutural. Entre seus objetivos está o fortalecimento da presença negra em espaços de protagonismo, especialmente no campo do empreendedorismo.