“Feliz aquele que superou seu ego”. De repente, você lê isso descontextualizado e acha lindo. Talvez até compreenda no pensamento uma espécie de humildade ou ausência de soberba. Esse pensamento, apara além de tudo, é de Sidarta Gautama, nascido em Lumbini, no Nepal, por volta de 560 a.C.
Talvez, nosso diálogo seguinte, na realidade, fosse mais ou menos assim:
⁃ Nunca ouvi falar dessa pessoa, Dr.ª. Sílvia!
⁃ Ah, você ouviu. Ouviu, sim. Sidarta Gautama ficou conhecido como “Buda”, um dos mais conhecidos Filósofos Orientais até hoje seguido por milhares de pessoas.
Pessoalmente, não me afino muito com os ensinamentos dele. Sei pouco talvez, e o pouco que sei não se harmoniza com o que eu penso da vida e da essência humana. É verdade que, tanto o pensamento de Buda, como a Filosofia dos Gregos, coloca ênfase na razão como meio de alcançar “felicidade”, mas em bases nem diferentes (embora se possa achar alguns aspectos da concepção budista nas especulações filosóficas de David Hume e Schopenhauer).
O que não me agrada nele?
É que, no raciocínio de Gautama – que não era um profeta nem um messias, e nem atuava com a pretensão de ser uma ponte entre Deus e o homem, tampouco estava preocupado com as questões irrespondidas pela Metafisica e que nortearam o pensamento grego, pois Buda não tinha a pretensão de lidar com entidades para além de nossa experiência (investigação que lhe parecia inútil e sem sentido) -, o sofrimento é inerente à existência, à doença e à morte.
Até aí tudo bem. Concordo e nada a opor. O problema é que, para ele, a causa de todo o sofrimento é o desejo, isto é, o anseio pelos prazeres sensuais, como o apego aos bens materiais e ao poder mundano. Em sendo assim, o sofrimento pode, no seu imaginário, acabar, conquanto haja um desapego dos anseios, já que é do sofrimento no mundo que advém em grande parte a doença, a velhice e a morte.
Então, Gautama propunha a eliminação dos apegos justo para evitar desapontamentos e, por conseguinte, o sofrimento. Sugeriu que uma das causas para o apego seria o egoísmo, o autocentrismo e o autoapego. Daí sua proposta de que realizemos um completo domínio do ego, o que implicaria mais do que a simples renúncia das coisas que desejamos, mas, também, a superação de nosso vínculo com aquele que deseja: o “eu”, à medida que o mundo do ego, em Buda, é ilusório.
Minha desconformidade com essa proposta ou ausência de alinhamento resulta do fato de eu não achar que a vida faz algum sentido se renunciarmos a todos os nossos desejos, nossas aspirações e ao nosso “eu”. Que graça teria viver assim (embora nem o extremo egoísmo me agrade)?
Para Gautama, nada no universo origina a si mesmo, porque tudo precisa de uma causa para existir, uma ação prévia, capaz de produzir algum efeito. Desse modo, cada um de nós seria apenas uma parte transitória desse processo interno e, em última análise, uma parte impermanente e sem substância (que, como todas as demais partes, nasce, cresce e morre).
Na análise do Filósofo oriental, diante da impermanência, não existe nada de substancial no “eu”. Em realidade, sequer existe um “eu” que não seja parte de um todo maior – que ele chamou de “não-eu”, e o sofrimento resulta, a seu juízo, de nosso fracasso em não reconhecer isso.
Por isso, segundo Buda, devemos rejeitar uma existência ou uma identidade pessoal, que devem ser entendidas, nessa linha de raciocínio, como transitórias e sem substituição. Eterno mesmo é o “não-eu”, o todo maior, razão pela qual propõe o abandono à noção de ser um “eu” único, se quisermos encontrar um alívio ao sofrimento, especialmente porque, em sua ótica, o objetivo final da vida na Terra é o fim do ciclo de sofrimento, morte e renascimento em que nascemos.
Por meio da iluminação, evitando a dor do renascimento em outra vida, compreendendo o seu lugar no “não-eu”, seria assim, segundo Buda, que o ser “eu” se tornaria uno com o eterno e, dessa forma, atingiria o “Nirvana”, termo geralmente traduzido como “não apego”.
Tenho dificuldades, confesso, em aceitar essa ideia, seja pela minha formação cristã de fé em um princípio criador, de um ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, derivando de sua essência (e com ele assim comungando, embora não sejamos a mesma essência); da minha compreensão do conceito Cristiano de “Pessoa” e da ideia kantiana em torno da dignidade do ser humano com alguém com valor em si mesmo, insubstituível, irrepetível e insuscetível de ser trocado pelo equivalente em dinheiro ou precificado, isto é, de não poder ser considerado como um meio para um fim.
Isso que, em Buda, seria “ser feliz”, ao meu modo de sentir, equivaleria renúncia à própria humanidade e da essência humana, como aquilo que, para além do sofrimento, também são atributos tão naturais da natureza do ser humano (somos seres desejativos, como pontuou Schopenhauer). Que seria a vida sem sonhos e sem projetos de vida quaisquer de ser e de ter? A vida ser resumiria à uma renúncia à própria vida? Que Filosofia de vida seria essa? Viver para quê?
Sinto, intimamente, que a vida, em sendo renúncia à alegria, ao amor etc., com o intuito de eliminar o sofrimento, não teria o menor sentido se, na perspectiva de Gautama, renunciássemos aos desejos, não sofrêssemos e nossa passagem por esta dimensão nada significasse, porque nada seríamos senão um ciclo sem sentido, destinado a ser, renunciar, e não ser, o que, para mim, equivale a não ser nada.
Concedo que posso não ter entendido nada sobre esse pensador oriental. Mas, se entendi, não quero uma vida que se resuma à renúncia a desejos, sonhos e aspirações. E quero ter um significado como “eu” e como o não-eu (o outro que compartilha comigo idêntica aventura humana) e que, por isso, eu possa, concordo, contribuir para um mundo melhor, já que não nasci só para mim, tenho certeza.