Opinião

Priorizando os sapatos em detrimento dos pés

Crítica sobre o tratamento desproporcional que nosso legislador, ao longo dos tempos, tem conferido aos delitos patrimoniais

Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)
Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)

Estava preparando uma aula sobre os crimes contra o patrimônio em nosso Código Penal para os meus alunos do Curso de Direito da Faccat. Queria introduzi-lo como uma crítica sobre o tratamento desproporcional que nosso legislador, ao longo dos tempos, tem conferido aos delitos patrimoniais, em verdadeiro contrassenso com outros crimes de objetividade jurídica inclusive mais relevantes, como, por exemplo, a pessoa.

De repente, eu me deparei com uma expressão do pintor e escultor renascentista Michelângelo que traduz com absoluta precisão aquilo que deveria ser a epígrafe da minha abordagem docente: “Não entendo os que dão mais valor aos sapatos que aos pés…”

Pois é isso mesmo que ocorre com nosso Código Penal. Vejam: a pena mínima do crime de furto (art. 155, “caput”) é igual à do crime de lesão corporal de natureza grave (art. 129, parágrafo 1°); a pena do roubo simples (art. 157, “caput” é igual pena do homicídio privilegiado (art. 121, parágrafo 1°); a pena do homicídio qualificado (art. 121, parágrafo 2.°) é inferior à do latrocínio (art.157, parágrafo 3°), exemplificativamente.

Há uma artigo de Alberto Silva Franco intitulado “Breves anotações sobre os crimes patrimoniais” in ‘Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e Silva’, organizado por Sérgio Salomão Shecaira, São Paulo: Método, 2001, em que o autor faz acirradas críticas a essa desproporcionalidade no apegamento dos crimes patrimoniais em detrimento dos crimes contra a pessoa.

Punir com maior severidade crimes patrimoniais, ainda que com fundamento do direito fundamental do direto à propriedade, com o reconhecimento da iniciativa privada e dos valores sociais do trabalho, mostra o quão a lei penal está em desarmonia com a Constituição Federal em cujo vértice ou fundamento está o homem, a vida e sua dignidade, o que reclama profunda reflexão do legislador ordinário sobre as penas dos crimes contra a vida.