O que é Justiça?

Difícil é conceituá-la. Dizer o que a coisa é de verdade. Talvez ela seja algo mais sentido que passível de uma definição. Sentimos sempre o que ela não é. Aí a compreendemos.

Mas essa pergunta não nasceu hoje, nem ontem. Há milênios ela vem sendo repetida e tendo uma resposta em cada momento histórico distinto. Então, precisamos respeitar o pensamento daqueles que já enfrentaram esse questionamento e, refletindo sobre ele, deram um retorno fundado que não era mera opinião.

Pois bem. Em Platão, que dividia o mundo em dois, o “mundo ideal” e perfeito, o mundo etéreo, transcendente, não perceptível aos sentidos do homem, um mundo onde se situam os valores supremos, as verdades objetivas e eternas, a plena felicidade, tudo vinculado a uma ideia de “Bem Absolto” (que, adiante, Santo Agostinho cristianizou e chamou de Deus; um mundo que seria, portanto, o “céu cristão”, a eternidade da alma imortal); e o “mundo dos sentidos”, concreto, este em que vivemos, onde tudo é representação, é aparência, nada é real e eterno, porque tudo que nasce, cresce, se degenera e morre. Justiça integra aquela ideia de Bem-Absoluto. Essa é a definição de Justiça em Platão. É o Ser da Justiça.

Essa é a definição do justo em Platão. É o Ser da justiça. No mundo concreto, não há uma justiça real, porque tudo é aparente, uma imitação de uma ideia. No mundo real, o que existe é o Direito que, a seu turno, são as regras formuladas a partir da discussão e diálogo entre os “sábios” acerca do que seja mais próximo da ideia de justiça. O que a maioria dos sábios tomaram, refletindo, por justo (acho que, naquele tempo, não havia mensalão, e compra da consciência), deve ser o justo (o Dever-Ser do justo), o certo e, portanto, obrigatório. O Direito, portanto, continha, de certo modo, a justiça, mas não o tinha por sua essência.

Você pode me dizer: “ah, Doutora Silvia, mas isso foram algumas centenas de anos antes de Cristo!” Sim, foi. Mas foi um modelo rigidamente seguido durante séculos, sendo o modelo que inspirou o Positivismo Jurídico do austríaco Hans Kelsen que serviu de paradigma para inúmeros sistemas jurídicos do ocidente, inclusive em nosso país. Direito era a lei. Mas, se a Lei for injusta? Isso não existe. Lei é lei; o que é lei é Direito válido e tem que ser aplicado para todos indistintamente.

Ulpiano, entre os romanos, por exemplo, teve uma ideia bem distinta de justiça: “justiça” é a vontade permanente e perpétua de dar a cada um o que é seu. De certa forma, podemos dizer que essa formulação ainda vem da Filosofia Grega, precisamente de Aristóteles, uma compreensão de justiça que ganhou corpo no medievo e se impõe em um constitucionalismo de valores estruturado na dignidade da pessoa humana.

Em primeiro lugar, em Aristóteles (cuja filosofia compreende apenas o mundo concreto, aproximando corpo e alma, trazendo o transcendente para dentro do homem, o que São Tomás de Aquino, na Escolástica, vai tratar como um Deus imanente, dentro do próprio ser humano, o primeiro princípio que não é causado por nada, mas é a causa de tudo que existe no universo), precisamos compreender a relação que Aristóteles faz entre Justiça e Igualdade: todo justo é uma forma de igual. Na verdade, aqui ele coloca em palavras o que todo mundo reconhece, algo que é do senso comum. Por exemplo, se você tem dois filhos e dois chocolates e dá dois para um e apenas um para o outro, isso é injusto, isso é injusto, porque é desigual. Ora, se são irmãos, filhos do mesmo pai, o filho preterido em um chocolate vai entender que justo seria ele receber também dois chocolates. A mesma quantidade do irmão, é uma questão de igualdade.

Porém, nós não sabemos que motivos levaram o pai a distribuir não igualitariamente os chocolates. Se ele tivesse dado dois chocolates para um dos filhos porque esse lavou a louça, por exemplo, ao passo que o outro não, então estaríamos de acordo que o pai já não teria sido injusto, pois o filho que lavou a louça estava recebendo uma recompensa. Mereceu. Nessa linha está o entendimento de Aristóteles sobre a teoria do justo, senão vejamos.

O Filósofo de Estagira (ele não era grego, pois nasceu na Macedônia) foi mestre em tudo classificar, segundo suas características, em gêneros e espécies), dividia a Justiça (que entendia como a maior das virtudes) em duas grandes espécies: a Justiça Total ou Universal (que identifica com a legalidade, ou seja, as leis), e a Justiça Particular.

O Estado não é, segundo Aristóteles, uma simples aliança, oriundo de um “contrato social”. O Estado é uma necessidade. O homem é um animal político; não conseguimos sequer pensar nele senão numa vida política. Assim, o Estado regula a vida dos cidadãos em sociedade por meio das leis. O conteúdo das leis é a justiça (da espécie Justiça Total).

Já a Justiça Particular, Aristóteles também procedia a uma subdivisão: a Justiça Distributiva e a Justiça Corretiva. Embora toda a justiça particular estivesse de algum modo ligada à ideia de distribuição de bens numa sociedade, a “Justiça Distributiva” diz que todos os bens em uma sociedade devem ser distribuídos segundo os seus méritos, segundo uma ideia de Meritocracia (ideia tão distorcida nos dias de hoje, mas que está em nossas vidas cotidianas) e segundo uma ideia de desigualdade, seguindo, ainda, a compreensão de tratamento desigual àqueles que estiverem em posições de fato em desigualdade. Por exemplo: o Estado na distribuição de riquezas aos menos favorecidos, densificando a ideia de igualdade material. Por isso, ela segue uma progressão geométrica, segundo uma regra de proporcionalidade.

A Justiça Corretiva (retificadora, igualadora, retificadora, de igualdade ou sinalagmática), a sua vez, entra como instrumento que visa à correção de situações de injustiças, opere ela no âmbito da injusta distribuição de bens de riquezas na sociedade, ou, de regra, nas relações de paridade, no campo objetivo, buscando regular situações mútuas, para resgatar uma divisão perfeita, segundo uma progressão aritmética(1×1), ou seja, por meio de uma igualdade absoluta, como um ato de justiça, no intento de devolver a cada um o que é seu.

Alguém pode perguntar: o que é em Aristóteles “Equidade”? Onde ela se encaixa no modelo aristotélico que até hoje vimos consagrado pela nossa Constituição, que alberga a igualdade formal (perante a lei) e a igualdade (material)?

Há uma conexão material entre a Equidade e a Justiça. A Equidade está ligada à ideia de Justiça Distributiva, porque ela é uma medida de correção do injusto. Isso nos diz que a Justiça tem várias formas de se expressar e que nos colocamos, na atualidade, diante de uma exigência de uma inescapável vinculação entre Direito, Justiça e Moral, face a uma igualdade fundamental em uma humanidade comum que compartilhamos.