
O Ministério Público Estadual de Bento Gonçalves (MP) quer saber se a estrutura da Secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social (SEDES) está sendo usada desde o ano passado para a prática de um delito conhecido como advocacia administrativa, que é quando um funcionário público patrocina, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública. A suspeita está ligada à criação do Núcleo de Assistência Social (NAS) na secretaria e a atuação de uma servidora contratada como cargo em comissão (CC) em abril de 2020, e que atende como coordenadora do núcleo. As investigações do Ministério Público até agora indicam a existência de uma estrutura não regulamentada dentro da secretaria, que estaria sendo utilizada para realizar atividades de interesse particular. Mas a investigação em andamento aponta até a possibilidade de improbidade administrativa na secretaria municipal.
Desde setembro do ano passado, a investigação está sob a responsabilidade do promotor de Justiça Alécio Nogueira, depois de ter sido iniciada pela Promotoria de Justiça Criminal. Na volta do recesso do Judiciário, ele aguarda que a prefeitura responda se o núcleo segue funcionando e se a funcionária permanece contratada, para encaminhar a investigação que apontará, entre outras coisas, se houve uso irregular dos recursos públicos na secretaria. No portal da transparência, a servidora, contratada em abril do ano passado como coordenadora de Divisão de Atendimento a Crianças e Adolescentes na pasta comandada por Eduardo Viríssimo, que permanece na secretaria, não consta como afastada e não há registro de rescisão contratual. De acordo com a secretaria, a servidora está nomeada com um salário de cerca de R$ 2,5 mil mensais para 40 horas semanais de trabalho, e o pagamento dos salários seria a única despesa da secretaria com a manutenção do núcleo, custeada pelos recursos livres da secretaria.
Em depoimento prestado em setembro, a servidora confirmou que exerce a função de coordenadora do Núcleo, que aliás não existe formalmente, outro aspecto que alimenta as suspeitas. Ela disse que realiza concomitantemente atividades voluntárias em comissões, também informais, ligadas a familiares de apenados do sistema carcerário local, como a Comissão Familiares do Cárcere, também conhecida como comissão carcerária. Atuando há cerca de dois anos, a comissão conquistou certo espaço e reconhecimento junto aos órgãos da segurança pública do Estado e do município, mas também encontrou obstáculos no caminho.
Denúncias são estopim do problema
Os problemas da atuação da servidora e do núcleo iniciam com uma série de denúncias relacionadas às condições das celas do novo Presídio Estadual de Bento Gonçalves que o Núcleo fez a partir de indícios supostamente obtidos através de indicação da comissão, e remetida ao governo estadual, à OAB, à Defensoria Pública e outras entidades em julho do ano passado. Nos documentos enviados, alguns com a chancela do núcleo informal da SEDES e intitulados como Notificação de Situação Grave, o núcleo denuncia a “situação precária das celas”, em um cenário com água vertendo das paredes, altas taxas de umidade nas celas, roupas, cobertas e colchões frequentemente molhados, além da pouca quantidade de agasalhos e cobertas e falta de uniformes adequados para enfrentar o rigor do inverno. Em tempos de pandemia da Covid-19, o relato foi ainda mais contundente.
As denúncias provocaram um pedido de vistoria no presídio pelo presidente do Conselho Penitenciário do Rio Grande do Sul, Renato Kramer Peixoto, que solicita esclarecimentos quanto aos e-mails remetidos pela servidora do NAS. O Conselho da Comunidade na Execução Penal (CCEP), um dos órgãos regulados pela Lei de Execução Penal para intervir nas relações sociais dentro e fora da prisão, reagiu, afirmando que o propósito das entidades seria “tumultuar o sistema humanizado adotado pela Susepe”, rebateu as denúncias de umidade excessiva nas celas, atendeu algumas solicitações e fez uma série de questionamentos, alegando que não existe legitimidade para a atuação do núcleo e da servidora, que também representava os interesses da comissão informal de familiares de apenados que realiza atendimentos a familiares nas áreas de visita do novo Presídio de Bento Gonçalves, organiza entregas de mantimentos e atuou inclusive na rebelião que deixou 12 detentos feridos no início do ano passado.
A atuação do núcleo, não amparada pela legislação, foi questionada pelo CCEP que refutou as denúncias como “infundadas” e colocou dúvidas sobre o real objetivo da atuação considerada irregular. A Defensoria Pública (DP), embora admite reconhecer relevância na atuação da servidora também como representante da comissão informal, afirma que jamais havia sido procurada para responder a reclamações de falta de atendimento e diz desconhecer essa realidade.
Depoimentos admitem contradição
Em mais de uma oportunidade, a secretaria confirmou ao MP que o NAS atua sem ser formalmente constituído desde maio do ano passado. O objetivo da estrutura, que conta apenas com uma servidora, seria atuar nas instituições como um setor para atendimento e articulação aos imigrantes, indígenas, moradores de áreas irregulares e a comunidade carcerária, e também admitiu que o núcleo é financiado com recursos livres da secretaria, e que, ainda que admita que a servidora exerça atividade voluntária na comissão informal, essa prestação ocorreria fora do horário em que realizava as funções do núcleo.
Em seu depoimento, realizado em setembro ao MP, a servidora disse que realiza atividades voluntárias há pelo meno três anos, com diversos segmentos da sociedade. Ela confirmou ao MP que pode ter realmente confundindo e até extrapolado os limites de sua atuação. A coordenadora do núcleo disse que, “por falta de um protocolo do setor público, pode ter-se equivocado, levando para o referido órgão público tais pautas que eram da comissão carcerária”, e reconheceu que “tem consciência de que deve haver separação nas atividades da comissão e do NAS”.
Os elementos, considerados suficientes como indícios relevantes da ocorrência do crime de advocacia administrativa pela Procuradoria de Justiça Criminal, podem se reverter em uma denúncia de improbidade administrativa contra a funcionária e os gestores da secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social.
Além de explicar como não conhecia as denúncias relatadas pelo NAS e a atuação da servidora que ao encaminhá-las aos órgãos oficiais, a prefeitura terá de informar como se dá a atuação de um núcleo não-regulamentado na secretaria, quais os custos adicionais e como é feito o financiamento da atuação para além do pagamento dos salários da servidora. Além disso, a secretaria municipal deverá responder se houve desfio de função e também indicar se e como as funções para as quais a servidora foi devidamente contratada, nomeada como Coordenadora de Divisão de Atendimento a Crianças e Adolescentes, estão sendo realizadas.
O que é advocacia administrativa
É patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário público (artigo 321 do Código Penal). Pena: detenção, de um a três meses, ou multa. Se o interesse é ilegítimo: detenção, de três meses a um ano, mais multa.