Opinião

Doutora, é causa ganha, né?

Uma pergunta assombrosa aos advogados

Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)
Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)

Imagine você que havia um tempo em que nós, advogados, até poderíamos fazer um prognóstico para essa resposta… Não podemos mais. Seria uma temeridade. Aliás, virou uma pergunta assombrosa aos advogados: não sabemos mais o que vai sair da cabeça do julgador, a par de termos que nos explicar, por anos, com clientes, por culpa de demoras que não são nossas.

Para ser sincera, nem um conceito de direito poderemos nos atrever a dar, fora do mundo Acadêmico, pois estamos muito distantes daquele juiz oitocentista da tradição liberal em que o julgador cumpria o papel de ser a boca da lei, da qual emana uma decisão que declarava, e não criava, o direito. “La buche de la loi”!

A Jurisdição já não se limita a ser “negativa”, ou seja, dizer sobre o que não pode ser; o que contraria o direito posto. Foi guindada a um papel transformador, criador, agindo de forma positiva, ditando como “deve ser”, inclusive atropelando o princípio da legalidade estrita (previsão anterior em lei).

Houve um tempo em que eu não atava de acordo com isso ou, ao menos, não via problemas nisso: era uma via de justiça. Mas, justiça de quem e com que critério democrático legitimador. Juiz julga e não cria a norma da vez. Hoje, confesso, tenho repensado se isso é bom ou ruim para uma vida em Sociedade. A Jurisdição, se tivesse um nome de música, com a devida licença poética, seria o “Samba do Crioulo Doido”. A verdade de um julgado pode ser totalmente oposta a outro pelo mesmo prolator da decisão.

Esse ativismo judicial teve especial impulso no Estado do Rio Grande do Sul, com um movimento chamado “Direito Alternativo”. Porém, a proposta parece não ter sido bem assimilada. Virou subjetivismo puro.

Parafraseando Ângela Araújo da Silveira Espíndola, em artigo inserido em obra organizada por Lênio Luiz Streck e André Karam Trindade (Os modelos de juiz), “o umbigo da sociedade atual é o Poder Judiciário. Com definir o sentido do direito, da jurisdição e da democracia, numa época em que nossa atenção está concentrada no umbigo?”, indaga a autora (p. 29)e também eu.

Efetivamente, ao mesmo tempo em que a pós-modernidade não permite que se legisle sobre tudo (e do juiz se exige julgar com ou sei lei), vivemos a judicialização desse “tudo”, dos conflitos triviais à Política; alie-se a isso a morosidade, a ineficiência, a insuficiência, o decisionismo, o achismo, as arbitrariedades nas decisões judiciais e, sobretudo, o descaso para com as pessoas (até no processo eletrônico), além da corrupção já detectara inúmeras vezes dentro da própria Justiça, o que nos leva a questionar: ainda temos um conceito de direito ou vivemos um absolutismo velado, em que o “Monarca” dita o direito da vez, sem que ele próprio esteja submetido a esse mesmo direito, e a gente anda meio como um avestruz?

Isso também nos força a repensar a crise de democracia que me impede apostar todas as “minhas fichas”, leia-se, confiança, no parlamento (como fonte suprema do direito), porque, por lá, de há muito, as decisões não são tomadas de forma tão republicanamente assim, nada passando de uma ficção de “vontade geral”, mais retórica do que qualquer outra coisa.

Para não passar em branco a questão do descaso, não faz muito, juntei em um processo de família uma petição noticiando situação grave de suspeita de alguma forma de abuso com criança, pedindo providências urgentes. Com ela, acostei áudios e vídeo que, juntos, para serem ouvidos, demandava em torno de 7 a 8 minutos. Porém, entre a conclusão ao juiz para leitura e decisão e seu despacho para vista ao MP e à parte adversa decorreram em torno de 5 min.

Por óbvio, não leu a petição longa nem não ouviu os áudios e o vídeo. Também não adotou nenhuma providência cautelar até agora. É um bom juiz? É. Definitivamente. Excelente! Mas o sistema o impele a tratar processos como objeto. Nem dão conta de tanto volume.

A pergunta é: qual o significado que ainda tem a jurisdição em nossa vida, se a vida não tem mais condições de esperar por ela?

Esses pensamentos me atordoam e me causam arrepios, porque vou fechar meus olhos para esta existência sem uma resposta. Talvez alimente a esperança de que eles venham respondidos pelos pensadores do direito que me sucederem nessa linha de reflexão, com uma solução mais plausível para que, realmente, cumpra uma função que atenda, de modo sustentável – e não falida – às necessidades das pessoas, gente de carne e osso, como você e eu.