Democracia Despótica Não!

A Democracia, quando romanceada ou metamorfoseada, pode ser tão despótica quanto qualquer outro regime ditatorial ou até totalitário.

E vou demonstrar isso a vocês sem recorrer aos discursos atuais, insuportáveis e extremistas (ou isso ou aquilo, ambos supostamente fundados no mesmo regime político, afirmando-se igualmente lastreados na verdade e na exclusiva razão) manejadas por quem quer que seja ou direcionadas a quaisquer dos Poderes.

Afinal, a meu ver, tento faz de onde provém o exercício ditatorial do poder despótico, pois será despótico por igual, ainda que camuflado pelo divinizado princípio majoritário do Parlamento que, uma vez eleito, já distanciado de um verdadeiro interesse público e do bem comum, em boa verdade, conserva muito pouco de um interesse que pode servir à sociedade como um todo. Despotismo é despotismo, venha ele do Executivo ou do Poder Judiciário. Ditadura de um, de onze ou de todos não tem e nunca terá o condão de transformar em justo o que não é.

Vamos à demonstração então.

A Construção Federal, em seu artigo 5.°, Inciso LXXIV (“O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”), guindou o direito à Gratuidade da Justiça à condição de direito fundamental, com a garantia de acesso à Justiça e ao Poder Judiciário.

Para quê? Para que todos pudessem ter acesso à Justiça, independentemente de suas condições socioeconômicas, na medida em que a própria Constituição assegura que nenhuma lesão ou ameaça a direito ficará afastada da Jurisdição (CF, art. 5.º, Inciso XXXV). Consentâneo dessa ideia está o princípio da igualdade, para que, de fato, não só os mais pobres ou os mais ricos possam litigar em juízo, já que o Estado, ao monopolizar a jurisdição, impede que as pessoas, por desforço pessoal, resolvam seus conflitos.

Pois bem. Antes da Constituição Federal de 1988, a pessoa precisava provar, já no início do processo, na petição inicial, ou em contestação, que era pessoa pobre, para fazer jus a litigar gratuitamente. Com o advento da nova ordem constitucional (conjugando um direito fundamental e uma garantia de acesso), a Jurisprudência passou a entender, a despeito da Lei 1050/60, que bastava a pessoa “declarar” que não tinha condições de custear as despesas do processo sem o prejuízo de seu sustento e de sua família, para obter o benefício (leia-se “acesso ao Judiciário”).

Por esse paradigma, o que se estava a dizer? Não importa que você não seja exatamente pobre. Se você não estiver em condições de pagar as custas do processo, por que o valor é essencial ao seu sustento e de sua família, sua garantia de acesso estará garantida de qualquer modo. E você não precisará fazer prova disso; basta que declare (até porque, se declarar uma falsidade, incidirá em crime de falsidade ideológica).

Em 2015, adveio o Novo Código de Processo Civil (fruto de um processo democrático) e, com ele, a meu juízo, um primeiro retrocesso, isso no que diz respeito ao direito fundamental aqui enfatizado (retrocesso, e a meu ver, inconstitucional): você, agora, precisa quantificar, na petição inicial, o quanto quer de indenização por dano moral, não podendo o “quantum” ficar a cargo do juiz.

Importa dizer que, se você quer R$ 100.000,00, ok. Ponha lá em sua petição inicial esse como o valor da causa é terá de recolher custas judiciais iniciais sobre esse valor (3%).

E qual é o problema? Já escrevi sobre isso: por vezes, você não é exatamente pobre, mas não dispõe de tanto dinheiro (R$ 3.000,00) para fazer frente às custas judiciais iniciais. E isso é um problema, porque, por uma série de circunstâncias, você pode ser impedido de ter acesso à Justiça por vias oblíquas. Pensemos em uma indenização por dano moral de R$ 400.000,00, em razão da morte de um pai de família…

Além disso, acaso a Justiça não lhe dê o que você pede, você arcará com a sucumbência (custas e honorários processuais) sobre a diferença entre o pedido e o deferido.

Mas vem aí, pela “vontade democrática, segundo o princípio majoritário”, algo muito pior e que foi inclusive objeto de Nota Pública pela OAB – Seccional do Rio Grande do Sul: a MPV 1045/21.

Pela Nota, a OAB externou sua contrariedade e preocupação, bem como alertou a Sociedade quanto ao Parecer Final aprovado na Câmara dos Deputados, que alterou o texto original da Medida Provisória 1045/21, incluindo diretrizes rígidas sobre a Justiça Gratuita e revogando artigos do recentes Código de Processo Civil, o que não era objeto do texto original.

Em verdade, é um “Jabuti”? A OAB pontuou que, devido ao pouquíssimo debate, a Sociedade brasileira vê-se surpreendida com a sua aprovação precoce na Câmara (daí seu déficit de democracia desde a origem).

O parecer, de relatoria do Deputado Christino Áureo (PP/RJ), importa o rígido critério já trazido no PL nº 6.160/2019, em especial, no que tange à criação de requisitos objetivos, baseados exclusivamente na renda per capita ou familiar, para obtenção do benefício de assistência judiciária gratuita no âmbito dos Juizados Especiais Federais e no rito ordinário da Justiça Federal.

A OAB/RS, por sua Presidência, sublinhou que, em 2019, já se manifestara, por meio do seu Conselho Pleno e, também, por Nota Pública, contra os mesmos critérios, que agora foram “embutidos”, surpreendentemente, na Medida Provisória referida.

De forma sintética, o aludido parecer, aprovado na MPV 1045/21, assim como previa o PL nº 6160/19, dentre outras alterações, acrescenta o artigo 3º-A na Lei nº 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, determinando que o acesso ao Juizado Especial Federal Cível independerá de custas, taxas ou despesas processuais apenas na hipótese de concessão de assistência judiciária gratuita, destinada tão somente a pessoas pertencentes a famílias de baixa renda, entendidas como aquelas que possuem rendimento familiar per capita de até meio salário mínimo ou com renda mensal familiar de até três salários mínimos (hoje R$ 3.300,00).

O critério, ademais, é estendido a todo o âmbito da Justiça Federal, pois o projeto referido altera a Lei nº 5.010/1966, inserindo idêntico critério para a gratuidade.

Então, pergunto: essa proposta legislativa está a serviço da sociedade, do interesse público, da garantia fundamental de acesso? Atende a um interesse efetivamente social tornar mais difícil à população brasileira o acesso à Justiça mais cara, inefetiva e decisionista (tudo depende em que Vara, em que Câmara, em que Turma, enfim, o processo for parar, uma crítica nada pessoal) de que já ouvi algum dia se ouviu falar? Podemos dizer que isso ainda constitui uma vontade democrática, mormente com esses “Jabutis”, inserções de afogadilho que, quando se vê, já é lei? Veja que Lei, mesmo quando produto retórico de democracia, pode ser também despótica.

Eu só espero que a OAB (Nacional) se inspire na Seccional Gaúcha e, legitimada pelo artigo 103 da Constituição Federal, se essa excrescência virar lei, que ingresse com a compete Ação Direta de Inconstitucionalidade (porque a pertinência temática é autoevidente) e nos defenda desse despotismo disfarçado com um figurino legal.