Quem passa, no intervalo de segundos, pode não perceber. Mas a pessoa que está embaixo de uma marquise, deitada a um colchão, com poucos pertences, tem trajetória de muitos anos. Tem qualidades, defeitos, gostos, sentimentos. Sonhos. E, ao fim do dia, talvez escolha trocar algum punhado de moedas por algo muito mais valioso: respeito. Fenômeno relativamente recente em Bento Gonçalves, as pessoas em situação de rua são um quadro complexo e de solução pouco rápida, muito menos óbvia.
De acordo com dados da Secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social, a cidade conta atualmente com 43 pessoas nesta condição. Uma leve redução em relação ao ano passado, quando eram 60. Do total, o Poder Público considera que 11 se encontram no processo de superação da situação. “São de várias cidades, inclusive do próprio município, com os vínculos rompidos com os familiares. Trabalhamos no sentido de mobiliza-los quanto a condição vivenciada com perspectiva superar a situação de rua e indicação de locais que poderão alugar como espaço de moradia provisório”, comenta o titular da pasta, Eduardo Viríssimo.
Liberdade
João (nome fictício) nunca viu o pai, que abandonou a mãe ainda na gravidez. Nasceu em uma favela no sul do estado “onde de 10 meninos que nascem, 9 se envolvem com o crime.” Com 13 anos começou a vender droga e por consequência vendeu a vida para uma facção. Nesse momento já se condenara à vida de nômade que hoje leva.
Aos 18, se envolveu de vez na guerra por territórios do tráfico e sofreu tentativa de homicídio e acabou revidando para se manter vivo. “Era um grupo de mais de dez pessoas. Acabei matando o principal deles depois que ele me deu treze tiros e acertou dois.”
Cumpriu um terço da pena, o equivalente a dez anos. Saiu “pela porta da frente”, mas com muita coisa a resolver. A mãe, desolada por ter filho responsável por uma morte, entrou em depressão profunda. “Era forte e ficou fraca de tanto chorar. Por vê-la naquela situação, eu disse que ela nunca mais teria que entrar em delegacia e cadeia por minha causa. Só que eu tinha que ir embora. Não tinha como largar o crime, ter feito o que eu fiz e ficar ali. Peguei minha mochila, me despedi da minha família e isso já faz 13 anos.”
João relata receber alguns olhares atravessados, mas acredita ter ganho a população por não arranjar encrenca. “Eu não desaforo ninguém, sou educado com todo mundo, tento deixar tudo limpo. No almoço eu vou no restaurante, fico na frente e de 20 pessoas, uma vai me ajudar.”
O problema maior tem sido arranjar emprego, principalmente por conta dos antecedentes criminais. “Eu chego na empresa e eles têm 50 vagas. Entrego meu documento, eles vão para uma salinha e voltam dizendo que todas foram preenchidas”, lamenta.
Mas a verdade é que esse não é o objetivo. João quer montar uma barraca para vender churrasquinho em paradas de ônibus e eventos. “Eu aprendi a fazer onde morava com a minha família. Sei que sou bom nisso e sei que um dia vou conseguir. Ser meu próprio patrão.”
Casa de passagem
João é uma das pessoas em situação de rua que a Secretaria de Assistência Social chama de “ativos. São aqueles que não têm onde morar e, por razões diversas, optam por não utilizar a Casa de Passagem, espaço no bairro Maria Goretti voltado a abrigar quem se encontra nessa condição. Lá, recebem banho quente, materiais de higiene pessoal, comida, cama e encaminhamento para tratamentos médicos, trabalho e retomada de vínculos familiares.
Atualmente, a capacidade é de 19 vagas, ainda nos moldes da pandemia. Desde a fundação, em 2019, foram 933 utilizações do espaço, sendo 471 apenas em 2022. O principal público é de pessoas que circulam no município. Chegam no município com a esperança de bons empregos, mas são colocados diretamente na informalidade.
Desde 2021 na Casa de Passagem, a assistente social Roberta Pauletto relata que a principal recorrência de quem utiliza o espaço é de dependentes químicos. Na visão dela, o mais importante no trabalho que desempenha é saber ouvir quem está em situação de rua e precisa de ajuda. “Entender o que é mais latente e refletir junto com eles sobre as maiores urgências. Muitos chegam aqui já querendo um trabalho, mas essa é uma das últimas etapas. O primeiro é cuidar da saúde, conseguir cuidar de si. O nosso principal desafio é esse: fazê-los entender que é todo um processo.”
Outro desafio é desconstruir na mente da população em geral a ideia de que a pessoa que está na rua precisa ser retirada a qualquer custo, em processo de higienização social. “Nós não vamos fazer isso. Nós vamos respeitar, inclusive aqueles que não querem sair. Vamos olhar com empatia, generosidade e buscar refazer vínculos e encaminhamentos”, diz, convidando todos a fazerem o mesmo.
Futuro
Com 25 anos, Marcelo (nome fictício) esbanja juventude. No rosto e nos planos. Recém-chegado ao município, ele é mais um que veio em busca de um futuro melhor. Trabalhou na safra da uva, e, agora, está encaminhado para ser contratado em um supermercado. A caminhada, passo por passo, é trilhada exatamente com o apoio da Casa de Passagem.
Vindo de Tenente Portela, chegou sem ter nem os documentos, mas com muita vontade de crescer. “Vim pra trabalhar, pra ter um futuro melhor. “Eu queria ser policial, mas não tive essa oportunidade. Agora quero ter um comércio meu, minha casa. Mais futuramente uma família.”
Também com auxílio da Casa de Passagem, Antônio (nome fictício), com 56 anos, tem mais idade, mas a mesma esperança em dias melhores. Em Bento Gonçalves há 32 anos, entre idas e vindas, foi casado até o momento em que a bebida tomou o protagonismo da vida. Desde então, não conseguiu se equilibrar. “A bebida me levou tudo. Eu poderia estar bem, mas estou cada vez pior.”
Antônio está limpo, atualmente, e mantém os sonhos vivos. Sabe que a dependência química o acompanhará, mas pretende se manter forte para controlar a doença. “Quero me ajeitar agora. As chances estão acabando e eu ficando velho. É arranjar um trabalho e ir do serviço para a casa.”