Opinião

Às vezes, será tarde

Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)
Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)

Minha amiga Ana Cláudia Lopes, Promotora de Justiça do 1.° Tribunal do Júri de Belo Horizonte, contou que, dias atrás, atuou em um Júri de Feminicídio tentado e que ela não teve êxito em convencer o Conselho de Sentença para condenar o autor do crime, porque a tese do réu era de que ele não queria matar sua companheira; apenas dar um “susto” nela.

Até aí, não vi nada de extraordinário, a uma porque quem julga não é quem acusa e, a duas, porque nem sempre o Ministério Público tem razão (tanto é que inúmeras denúncias são julgadas improcedentes. Aliás, se ele sempre tivesse razão, nem precisava de Defesa. Porém, no caso específico, o detalhe é que, para dar o tal do “susto”, o autor do fato até recarregou a arma de fogo. Não era um “sustinho” à evidente!

Crimes dessa natureza, geralmente, são praticados às escondidas, e conta só com duas versões (a do autor do fato é a da vítima), a serem analisadas em consonância com o restante da prova. No caso concreto, Ana teve a dura tarefa de defender a vítima dela mesma, porque, pasmem, ela aderiu ao discurso do réu: “ele só quis me assustar”. Ora, se a própria vítima se retrata e “as melancias se acomodaram na carroça”, sobra pouco para se conseguir uma reprimenda penal dos jurados, quando a própria vítima demonstra não querer.

Mas é preciso questionar, porque ninguém sabe o quanto retratações desse tipo, com versões nem distintas daquela que, no calor dos fatos, vítima de feminicídio tentado deu à autoridade policial. Afinal, o que determinou a retratação? Uma efetiva mudança de comportamento do agressor (e isso pode ocorrer)? A vítima foi ameaçada de “conclusão do serviço”, se não se retratasse? Teve medo de represálias contra si e/ou sua família?

Isso precisa ser bem sentido e examinado em cada caso, com responsabilidade, pois, quando, na próxima, em vez de ser vítima de tentativa, for vítima enterrada, ela já não terá mais oportunidade de se retratar.

Todos deveríamos levar isso muito a sério, especialmente diante da realidade de recorrentes assassinatos de mulheres como se fossem só objeto de desejo e posse de alguém, nesse verdadeiro mar de sangue oriundo de violência de gênero perpetrada em no âmbito doméstico.

Ana me mandou um poema de autor desconhecido que divido com vocês:

1. Hoje recebi flores.

2. Hoje recebi flores. Não é meu aniversário nem um dia especial. Tivemos a nossa primeira discussão ontem à noite. E ele me disse muitas coisas cruéis, que me ofenderam de verdade. Mas sei que está arrependido e não as disse sério, porque ele me enviou flores hoje. E não é o nosso aniversário ou nenhum outro dia especial.

3. Ontem, ele atirou-me conta a parede e começou a asfixiar-me. Parecia um pesadelo. Mas dos pesadelos acordamos e sabemos que não são reais. Hoje, acordei cheia de dores e com golpes em todos os lados. Mas eu sei que ele está arrependido porque me enviou flores hoje. E não é Dia dos Namorados ou nenhum outro dia especial.

4. Ontem à noite, bateu-me e ameaçou-me de morte. Nem a maquiagem nem as mangas compridas poderiam ocultar os cortes e os golpes que me ocasionou desta vez. Não pude ir ao emprego hoje, porque não queria que percebessem. Mas eu sei que ele está arrependido, porque, hoje, ele me enviou flores. E não era Dia das Mães ou outro dia especial.

5. Ontem à noite, ele voltou a me bater. Só que, dessa vez, foi pior. Se conseguir deixá-lo, o que vou fazer? Como poderia eu, sozinha, manter os meus filhos? O que acontecerá se faltar dinheiro? Tenho tanto medo dele! Mas dependo tanto dele que tenho medo de deixá-lo. Mas eu sei que ele está arrependido, porque ele me enviou flores hoje.

6. Hoje é um dia especial: é o dia do meu funeral. Ontem, finalmente, ele conseguiu me matar. Bateu-me até eu morrer. Se, ao menos, eu tivesse tido coragem e força para deixá-lo…Se tivesse pedido ajuda profissional, hoje eu não teria recebido flores!