Opinião

Até onde vai a liberdade de escolha do agente público?

Foto: Arquivo Leouve
Foto: Arquivo Leouve

Afinal de contas, pode ou não pode, o Poder Judiciário, da primeira à última instância de jurisdição (STF), adentrar o mérito administrativo, para sindicar atos de administração por critérios de conveniência e oportunidade, ou seja, os atos ditos “discricionários”, aqueles de livre escolha de seu conteúdo, do seu tempo e do seu destinatário, pelo administrador público?

Em outras palavras, é possível, juridicamente, que um poder substitua a vontade de outro poder pela sua?

Nos bancos acadêmicos aprendemos que não. Estudei pela Constituição anterior a de 1988 e, desde os primórdios, aprendi que o Poder Judiciário não poderia trocar a vontade do administrador pela sua, pena de aviltamento do princípio da separação dos poderes, segundo uma ideia de que em cria a lei não a executa, quem a executa não julga e quem julga não cria nem administra a execução das leis.

Também aprendi que existiam atos administrativos “vinculados” e “discricionários”. Naqueles, os vinculados, a atuação da Administração Pública estaria adstrita à legislação, porque a função de administrar a coisa pública é estritamente vinculada à lei e ao princípio da legalidade, consentâneos do chamado “Estado de Direito”, em que o próprio Estado está submetido às Leis que dita.

Ou seja, nos atos vinculados, o exercício da competência administrativa pode aparecer contida dentro de limites de extrema objetividade, em que o próprio conjunto normativo delimita a forma e a providência que o agente público deve adotar, diante das circunstâncias concretas, para alcançar a finalidade legalmente estabelecida.

Já nos discricionários não. Conforme lição que aprendi de  Hely Lopes Meirelles, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Diógenes Gasperini, Odete Medauar e outros, a discricionariedade administrativa pode ser definida como a faculdade que a lei confere à Administração para apreciar no caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o Direito.

Mas essa teoria sofreu, nas últimas décadas, alterações substanciais, seja pela reaproximação entre Direito e Moral (inclusive administrativa), depois de uma longa onda positivista extremada; seja por termos inaugurado um Constitucionalismo de Valores que se projetou para o campo do Direito Administrativo, na medida em que o artigo 37, caput, da Constituição Federal, preceitua que a Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, da moralidade e da publicidade.

Como é fácil de inferir, essas exigências axiológicas e valorativas passaram a constituir exigências dos Atos de Administração, de sorte que a liberdade, mesmo em se tratando de ato discricionário, hoje deve ser compreendida por uma liberdade limitada ou vinculada a princípios, pois, mesmo livre, o agente público, ao praticar atos de administração, deve observar os princípios constitucionais legalidade, impessoalidade, da moralidade e da publicidade. O princípio da legalidade ganhou novos contornos. Evoluiu para o princípio da juridicidade. Assim, o ato deve ser conforme a lei e compatível com os preceitos constitucionais.

Não vejo nenhum problema, nesse quadro, de o Poder Judiciário adentrar e sindicar o demérito administrativo, ou seja, vetar escolhas que sejam contrárias aos princípios constitucionais antes mencionados. Aliás, previsão expressa de boa e velha Ação Popular e Ação Civil Pública para compelir os deveres de probidade administrativa estão aí para nos dizer que pode.

No mérito, confesso que tenho algum receio dessa substituição. Como todos devem saber, a Jurisdição, embora lhe seja da essência a imparcialidade, nunca é axiologicamente neutra. Sempre é um campo minado e ideologicamente comprometido. Basta ver como são escolhidos os Ministros do STF. Então, confesso, tenho algumas reservas, porque, quando este erra, não temos quem fiscalize o fiscal da Constituição.