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O rosto de Muçum dez dias após a enchente

Pilhas de entulhos, estruturas deformadas e lama ilustram o drama do município de quase 5 mil habitantes

O rosto de Muçum, dez dias após a enchente
Luciara Machado, 55 (C), e Ricardo Matias de Oliveira, 50 (E), naturais de Muçum, caminhavam na Barão do Rio Branco com o sobrinho Leonel Maia, 28 | Cobertura fotográfica: Luiza Fim/Grupo RSCOM

Dez dias após a catástrofe, o sol voltou a raiar em Muçum nesta quinta-feira (14). O tempo firme é um alívio para os moradores do município mais devastado pelas enchentes no Vale do Taquari, que engoliu casas, e abreviou histórias e vidas. Ao todo, são 48 vítimas – 16 somente em Muçum – confirmadas pela Defesa Civil gaúcha, sendo que há, ainda, nove pessoas desaparecidas e mais de 1.400 desabrigadas.

Na Rua Barão do Rio Branco, uma das principais da pequena cidade sexagenária, pilhas de entulhos, estruturas e placas deformadas, vidros quebrados e lama ilustram a destruição deixada pela força das águas que, segundo o relato de moradores, passava pela via com uma correnteza sem precedentes.

Apesar dos problemas sem fim, um casal e seu sobrinho caminhavam pela rua com um semblante de esperança. Luciara Machado, 55, e Ricardo Matias de Oliveira, 50, naturais de Muçum, viram a casa de madeira, que tinham no bairro São José, ser consumida, pouco a pouco, pela cheia.

Luciara conseguiu encaixotar algumas roupas e eletrodomésticos para levar até a vizinha, onde, até então, a água nunca havia castigado.

“Mesmo assim a água bateu ali. Foi terrível. Eu perdi tudo. Fomos lá ver depois e não tem nada, não tem forno, não tem micro-ondas. A água levou tudo”, revela Luciara.

"A última enchente deu 26 metros. Essa aqui deu 32 metros".
Luciara Machado, 55 (C), e Ricardo Matias de Oliveira, 50 (E), naturais de Muçum, caminhavam na Barão do Rio Branco com o sobrinho Leonel Maia, 28.

 

Ladeado pelo Rio Taquari, Muçum já enfrentou alagamentos em outras ocasiões. O marido, Ricardo, recorda bem da intempérie anterior, em 2020.

“A última enchente deu 26 metros. Essa aqui deu 32 metros”, compara.

Assim como diversas outras pessoas, os dois procuraram abrigo no Salão Paroquial Comunitário, que também foi tomado pela enchente. O jeito, segundo ele, foi subir ainda mais o morro da área central e se abrigar na igreja. Luciara e Ricardo foram transportados, em um ônibus da Prefeitura, para um alojamento temporário em Dois Lajeados. Era justamente este o destino deles no momento em que conversaram com a reportagem.

Junto, estava o porto-alegrense Leonel Maia, 28, sobrinho de Luciara. Ele conta que conseguiu sair à tempo de sua moradia de material antes dela dividir-se ao meio. Uma outra tia e um idoso, que necessita de cuidados especiais, moravam no local e conseguiram se salvar. Por outro lado, os animais de Leonel não tiveram a mesma sorte. Ele também aguarda novidades de quatro amigos, que não vê desde então.

“Infelizmente tive a perda de dois dos meus cachorros, que tive que soltar. Depois que a água abaixou eu vi os dois lá, sem vida”, lamenta. E relembra: “Na noite de segunda-feira se ouvia gritos de gente presa nos prédios, e não podia salvar. Por que se colocasse um pé, a correnteza aqui da praça passava a mais de 100 km por hora”.

Ainda no Centro do irreconhecível município, a moradora Bruna Luzzi Brino, 29, conduzia tranquilamente seu Fiat Uno vermelho para encontrar a sogra. Por ficar em um lugar alto, a casa de Bruna, onde mora com o namorado e o cachorro, não foi atingida pela catástrofe. Mas o ganha pão da jovem, uma oficina mecânica, foi parcialmente inundada.

Se o tempo fecha e nuvens escuras voltam a se aproximar, o arrepio é instantâneo.

“Agora está melhorando um pouco. Mas quando chove, é aterrorizante”, confessa.

Bruna Luzzi Brino, 29, conduzia tranquilamente seu Fiat Uno vermelho para encontrar a sogra.

 

“Foi um filme de terror”

Algumas horas mais tarde, em um ginásio de esportes onde estão concentrados boa parte dos donativos que chegam à Muçum, estava Rosane Couto Pavi, de 54 anos. Exausta por enfrentar momentos de vida ou morte, e ainda ter que batalhar para reconstruir sua casa e reconquistar tudo o que tinha, ela recordou das cenas presenciadas no último dia 4 de setembro.

A mulher chegou em casa, depois do trabalho, e conseguiu apenas resgatar a filha, Maria Eduarda, 15, e as duas cachorras, Meggy e Amora. A vida é prioridade, mas deixar tudo para trás não é simples, segundo Rosane.

“Quando eu saí porta à fora, a água veio e derrubou eu e minha filha. Quase fomos carregadas pela enxurrada, mas veio um homem nos salvar”, relata. “Foi um filme de terror. Minha casa foi embora, fiquei sem nada, só com a roupa do corpo”.

Vagando pelo ginásio, ela tentava buscar panelas, móveis e sacolas de roupas junto aos voluntários.

“Não temos para onde ir. Estamos à Deus-dará. Sem casa, sem móveis, sem nada”, desabafa a moradora de Muçum, que dorme temporariamente no Salão Paroquial Comunitário.

"Estamos à Deus-dará. Sem casa, sem móveis, sem nada", desabafa Rosane Couto Pavi, de 54 anos.
Ginásio de esportes onde boa parte dos donativos estão concentrados.

 

Algumas histórias se assemelham, em dor e em desfecho. Com um olhar distante e o rosto abatido, porém disposta à conversar, a atendente Amanda Gomes Lorenzi, 25, estava sentada nos degraus de uma escada, próximo à paróquia central. Um cão de pelo claro, brincalhão, com energia de sobra, tirava sorrisos dela e da amiga, em meio ao cenário triste.

Amanda teve a casa parcialmente destruída. Ela não imaginava que a cheia teria tamanha violência para entortar as  paredes da moradia. Ainda assim, ela segue se abrigando no local, junto a mãe e três irmãos, por não ter outra opção.

“Estamos provisoriamente morando lá, por que não tem aqui em Muçum, né, a cidade foi destruída inteiramente”, comenta.

Para muitos, não há força que os mantenha na cidade, e assim, parte da população, antes de quase cinco mil habitantes, vai se esvaindo.

“Muita gente já foi embora, onde eu moro o pessoal está dando tchau e abandonando. Quem é que vai querer pegar uma enchente de novo?”, questiona a jovem.

"Muita gente já foi embora, onde eu moro o pessoal está dando tchau e abandonando. Quem é que vai querer pegar uma enchente de novo?", questiona Amanda Gomes Lorenzi, 25.

 

A ajuda humanitária é bem-vinda e serve de alento, na ótica de Amanda.

“Não tem explicação para dimensionar o quanto estamos agradecidos à todo mundo que está vindo pra cá ajudar, além das doações, tentando reerguer a cidade”, finaliza.

Sempre de portas abertas

Não há opções de comércio em Muçum. Supermercados, bares, lotéricas, bancos, prédios públicos e empreendimentos foram revirados pela lama e pela água, isso quando a estrutura não foi à baixo. Dentre esta realidade, um ponto é exceção, na Rua Barão do Rio Branco: a Rodoviária municipal, anexa a um bar.

No comando está a família Di Domenico, há três décadas. Mairi Chiela Di Domenico, de 65 anos, atende e gerencia tanto a venda de passagens quanto o comércio de bebidas. Junto a ela, o marido José Mário Di Domenico, 66, e Caroline Filippi Chiela Di Domenico, 23, trabalham por lá.

Ela aponta a marca de barro na parede, que registra a altura em que a enchente atingiu. A água também apagou as escritas em giz dos municípios atendidos pela Rodoviária. Segundo a proprietária, que também é pedagoga, o estabelecimento estava funcionando no momento da tempestade.

Mairi Chiela Di Domenico, de 65 anos, atende e gerencia o estabelecimento há três décadas.
Rubí, atenta, em cima do balcão, e José Mário Di Domenico, 66, ao fundo, atrás do balcão.
Mairi aponta a marca de barro na parede, que registra a altura em que a enchente atingiu.

 

A família conseguiu escapar pelos fundos e se alojar na casa de vizinhos, onde era seguro até a natureza dar uma trégua. Para trás, ficaram computadores e móveis de dentro do bar.

“Comércio não tem mais, casas foram devastadas. Aqui na frente, desciam casas inteiras”, relembra.

Para repor as perdas, o jeito foi abrir as portas novamente, assim que possível. Os destinos disponíveis, neste momento, são Encantado, Arroio do Meio, Estrela e Porto Alegre. Além de Vespasiano, Dois Lajeados, Guaporé, Serafina Corrêa e Bento Gonçalves.

A proprietária lamenta que, neste período, em que é comemorado o mês da Revolução Farroupilha, seria de grande movimentação turística na região. Conforme Mairi, cerca de 70 mil pessoas costumam passar pelo local todos os anos. Por isso, o estoque de bebidas estava reforçado.

“A gente tem uma clientela boa né. O pessoal gosta de vir aqui. Tínhamos nos programado, por que teria mais gente na cidade, e aí foi embora com a chuva metade [do estoque de bebidas]. Um pouco conseguimos salvar”, complementa ela.

Quase a totalidade do município já conta, novamente, com fornecimento de água e luz. O Salão Comunitário Paroquial distribui, diariamente, cerca de 3 mil marmitas. No local, também há abrigo para desalojados. Para saber como se voluntariar, clique aqui.

Recortes de Muçum

Reportagem fotográfica: Luiza Fim/Grupo RSCOM