Oito meses depois do maior júri da história do Rio Grande do Sul, que acabou por condenar os réus do Caso Kiss por 242 homicídios e 636 tentativas de homicídio, as defesas dos quatro condenados apresentaram os recursos de apelação durante o julgamento realizado no Tribunal de Justiça em Porto Alegre nesta quarta-feira (3). A sessão, que durou mais de quatro horas, resultou na anulação do júri realizado em dezembro de 2021.
Durante as falas, as defesas de Elissandro Callegaro Spohr, ex-sócio da boate, de Mauro Londero Hoffmann, ex-sócio da boate, de Marcelo de Jesus dos Santos, e de Luciano Bonilha Leão, apontaram quais as situações geraram o pedido de nulidade do júri.
O advogado de Spohr, Jader Marques comentou a própria tristeza, a da esposa e da mãe de Elissandro. Ele criticou a condenação de dolo eventual para os quatro réus, e também as diferentes ações, que foram julgadas pelo mesmo quesito.
– Não sou uma pessoa triste, muito pelo contrário senhor presidente. Mas, nesses 27 anos de profissão, 9 anos nesse processo, tenho vivido muitas experiências e posso lhe assegurar sem nenhum medo que eu nunca vivi no processo penal nenhuma experiência que me deixasse feliz. Nem na absorção do caso mais difícil da minha vida eu senti o mínimo de felicidade. Todo processo me causa dano, ferimento, trauma. E eu sinto a tristeza de todas as pessoas que nele se envolvem. No julgamento de hoje, seja qual for o resultado, senhores julgadores e demais pessoas aqui presentes, eu tenho certeza que ele vai deixar um rastro de dor em todas as pessoas. Se o julgamento for anulado, como deve ser, quero deixar muito claro que eu saio daqui com a consciência muito tranquila de ter feito o que eu podia. Mas, por outro lado, se esse absurdo de julgamento for mantido, eu tenho que deixar registrado que também saio daqui com a consciência muito tranquila de ter feito tudo que eu podia. As nulidades desse processo elas se avolumam, foram todas apontadas, uma a uma – destacou.
Na sequência, Jean Severo, advogado de Luciano Bonilha Leão tomou a palavra, e da mesma forma criticou o dolo eventual. Severo comentou que viu pelas redes sociais que “o Brasil absolveu Luciano”, diante dos comentários feitos ainda durante o júri em dezembro passado.
Já Tatiana Borsa, advogada de Marcelo de Jesus dos Santos, falou de forma mais contundente a respeito da presença da plateia durante o júri:
– Os jurados foram influenciados por estarem ao lado da plateia. Não deveria ter plateia – disse.
Por fim, Bruno Seligman de Menezes, advogado de Mauro Londero Hoffmann, falou que o Ministério Público mudou o viés da acusação durante o júri. Nos bastidores durante o intervalo, Menezes disse que a defesa estava preparada por meio de uma sustentação concisa e técnica:
– A manifestação da acusação demonstrou tudo aquilo que a gente vinha apontando durante o julgamento em si, é uma manifestação de defesa das instituições. Mais uma vez, não refutou os elementos trazidos pelas defesas, e tentou justificar a atuação das instituições em todas as suas falhas ao longo de todos os processos que culminaram na tragédia. Nós estamos confiantes que o tribunal vai anular e os réus poderão ser submetidos a um novo julgamento – afirmou.
A acusação se pronunciou por meio do assistente Pedro Barcellos que rebateu as críticas das defesas. Depois, a procuradora de justiça Irene Soares Quadros deu o parecer e falou sobre os comentários negativos que foram destinados ao poder público após a tragédia
– Quem é o poder público? É a prefeitura? São os bombeiros? Promotor de justiça, juiz de Direito, não tem poder de polícia administrativa – enfatizou a procuradora a respeito das atribuições do poder público.
Os familiares das vítimas e alguns sobreviventes assistiram o julgamento de uma sala separada. O novo presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Gabriel Rovadoschi Barros, esteve em Porto Alegre e disse como foi a ida de Santa Maria à Capital. Segundo ele, são cerca de 40 pessoas entre familiares e sobreviventes no local.
– A saída de Santa Maria foi no mesmo espírito da saída lá em dezembro, na vinda para Porto Alegre, um clima de muita união, muita força compartilhada e muito afeto construído, que embasa a nossa motivação para seguir lutando por justiça. E a nossa expectativa é que a soberania dos veredictos seja respeitada. Sabemos que não tem argumento possível para uma nulidade do júri e contamos também com a manutenção das penas que foram decretadas no fim do julgamento em dezembro – falou.
A sobrevivente Miriam Schalemberg, 36 anos, diz que depois de 10 anos de espera, o júri não foi exatamente como eles queriam, porém diz que não se pode perder o pouco que já foi conquistado:
– Não desejamos para ninguém o que a gente sente há 10 anos, e agora, estar revivendo isso, é bem sofrido de novo. Então, a gente tá esperando a decisão.
O relator da sessão e desembargador Manuel José Martinez Lucas leu e comentou uma a uma as requisições de nulidade. Foram 19 no total e todas foram negadas pelo desembargador. Após ele, o desembargador José Conrado Kurtz também teceu suas análises diante dos pedidos, ele se mostrou favorável à nulidade por conta da forma como os jurados foram selecionados e sorteados para o júri. Nos demais quesitos ele acompanhou o parecer de Lucas e não julgou haver razões a ponto de nulificar o júri.
Fonte: Diário de Santa Maria
Texto: Gabriel Marques
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