Opinião

Apontamentos sobre a Cadeia de Custódia e o Ônus da Prova

Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)
Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)

Considera-se “cadeia de custódia” o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio, desde que encontrado (o dito primeiro contato), sua coleta, seu armazenamento, seu reconhecimento até o seu descarte.

Na lição de Geraldo Prado (in Prova penal e sistema de controles epistêmicos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 77), um dos aspectos mais delicados na temática da aquisição de fontes de prova consiste justamente em preservar a idoneidade de todo o trabalho que tende a ser realizado, sigilosa e unilateralmente, em um ambiente de reserva que, se não for respeitado, compromete o conjunto de informações que eventualmente venham a ser obtidas dessa forma.

Isso tem uma razão importante, lógica e constitucional de ser, que é garantia do contraditório e da amplitude de defesa, consentâneos do devido processo legal: o direito de os acusados em geral (que, normalmente, não participam, por
meio de suas Defesas, da fase pré-processual ou inquisitorial da persecução criminal) de questionarem a autenticidade das evidências coletadas e examinadas, assegurando -se de que correspondem ao caso investigado, sem que haja lugar para qualquer tipo de adulteração deliberada ou de equívoco.

Esse questionamento nada tem de ilícito. Há, como sabemos, um preconceito enraizado na crença de que a atividade defensiva se pauta por má-fé, com manipulação e procrastinação, mas esse preconceito – que precisa ser superado – só vai até onde nós mesmos nos vemos envolvidos em uma injustiça, deliberada ou fortuitamente, ou seja, quando, individualmente, precisamos de alguém que nos defenda de uma iniquidade.

Desde a premissa de que erros existem e que o fato de ser um agente da vontade estatal não torna ninguém imune a eles, como também não é garantia, inquestionável, de caráter, já não foi sem tempo que o legislador trouxe para o processo penal preceitos contendo 4 etapas ou fases da cadeia de custódia, a saber:
1.ª) fase de arrecadação, que compreenderá aos atos de reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento e transporte;
2.ª) fase de processamento, que compreenderá ao recebimento e processamento;
3.ª) fase de preservação, que compreenderá ao ato de armazenamento; e,
4.ª) fase de inutilização, que compreenderá ao descarte propriamente dito.

Nesse cenário, recente decisão do STJ acolheu importante questão inerente ao tema: quando impugnada, a cadeia de custódia, pela Defesa, é dever da Acusação demonstrar a sua rigorosa observância.

Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a recurso em Habeas Corpus para anular provas obtidas pela Policia em investigação sobre uma organização criminosa especializada em furtos eletrônicos contra instituições financeiras, firmando entendimento de que o ônus da prova da correção da cadeia de custódia é do Estado.

Consta do Acórdão referido que aquelas provas eram digitais e foram coletadas em medida de busca e apreensão autorizada pela Justiça, com a consequente quebra do sigilo dos dados armazenados nos aparelhos eletrônicos apreendidos.

Ainda, que as máquinas foram periciadas, primeiro, pelos bancos das vítimas dos furtos e, depois, pela Polícia.

Houve impugnação, no caso, pela Defesa, pois tal circunstância representou inequívoca quebra da cadeia de custódia da prova digital: em face do descuido dos investigadores, não havia meios de garantir que os dados usados para embasar a denúncia eram exatamente os mesmos que foram retirados dos aparelhos.

Eram dados inconfiáveis, segundo a decisão. Isso porque a Polícia não adotou cautelas suficientes para garantir que a prova permanecesse inalterada; que a perícia deveria ser feita de maneira profissional e técnica, com elevado grau de conhecimento e diligência, e não depois de os dados serem manipulados pelos próprios bancos, afirmou o julgado.

No caso concreto, não se sabia como os dados foram inicialmente coletados, onde foram armazenados, quem teve contato com eles, quando tais contatos aconteceram e qual foi o trajeto administrativo interno percorrido, já que os bancos por meio dos quais os delitos teriam sido praticados tiveram acesso ao material e fizeram perícia antes da própria Polícia.

Por outro lado, ainda dentro da temática, é igualmente importante ter em conta que a 6ª Turma do STJ, tocante à violação da cadeia de custódia – disciplinada pelos artigos 158-A a F do Código de Processo Penal – já se pronunciou no sentido de ela não implica, de maneira obrigatória, a inadmissibilidade ou a nulidade da prova colhida.

É dizer, nessas hipóteses, decidir se a prova questionada ainda pode ser considerada confiável só é possível após sua confrontação com o demais da prova judicializada, quando, por considerá-la ilícita, se for o caso, deve, o Magistrado, declarar sua nulidade, ordenar sua retirada dos autos e encaminha-lá à destruição, conforme exegese do artigo 157 do Código de Processo Penal.