LONGO CAMINHO

Luta Antimanicomial; avanços e desafios no cuidado da saúde mental

18 de maio é quando se celebra o Dia Nacional de Luta Antimanicomial no Brasil. Este dia representa a resistência contra os manicômios, espaços que historicamente foram utilizados para isolar e marginalizar pessoas com transtornos mentais

A luta antimanicomial é um movimento social e político que busca transformar as formas de tratamento da saúde mental. Foto: Reprodução Freepik.
A luta antimanicomial é um movimento social e político que busca transformar as formas de tratamento da saúde mental. Foto: Reprodução Freepik.

As taxas de notificação por autolesões, assunto de saúde mental, aumentaram de forma consistente em todas as regiões do Brasil entre 2011 e 2022. Segundo estudo publicado em 2024 e desenvolvido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em colaboração com pesquisadores de Harvard, foram 21%. O mesmo levantamento aponta que o registro geral de suicídios teve um crescimento médio de 3,7% ao ano.

Com a mudança da dinâmica nas relações sociais durante a pandemia de COVID-19, aumentaram as discussões sobre transtornos mentais como ansiedade e depressão. Mas essa pauta não é de agora. Assim como também não é de agora que se questiona a maneira como cuidamos das pessoas que se encontram em sofrimento mental. 

A luta antimanicomial é um movimento social e político que busca transformar as formas de tratamento da saúde mental, defendendo a desinstitucionalização das pessoas com transtornos mentais e a construção de um sistema de cuidado baseado em liberdade, respeito e inclusão. Esse movimento tem suas raízes na década de 1960, inspirando-se no trabalho de pensadores e profissionais que questionavam a visão tradicional da loucura como doença, associada à segregação e controle, e defendiam práticas de cuidado mais humanizadas.

Um dos marcos mais significativos dessa luta aconteceu em 18 de maio de 1987, quando se comemorou o Dia Nacional de Luta Antimanicomial no Brasil. Este dia representa a resistência contra os manicômios, espaços que historicamente foram utilizados para isolar e marginalizar pessoas com transtornos mentais.

Em 18 de maio se comemora o Dia Nacional de Luta Antimanicomial no Brasil. Foto: Reprodução Internet.

Em 1989, o Brasil deu um passo importante com a Lei 10.216, que reformulou a forma de atendimento à saúde mental no país, criando condições para a implantação de uma rede substitutiva aos manicômios, a qual seria composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e residências terapêuticas.

A inspiração para o movimento antimanicomial brasileiro veio, em grande parte, de experiências internacionais, como o trabalho de Franco Basaglia na Itália. Basaglia, psiquiatra e teórico, foi uma figura central na reformulação do tratamento da saúde mental, liderando a desativação dos manicômios na Itália e propondo alternativas que desafiavam a visão patologizante e desumanizadora das pessoas com transtornos mentais. Sua abordagem defendia um atendimento baseado na liberdade, autonomia e inclusão social, princípios que ainda orientam as práticas de cuidado no Brasil e em outros países.

Avanços e Desafios: O caminho para o cuidado em liberdade

Nos últimos 20 anos, o Brasil vivenciou avanços significativos na implementação de um modelo de atenção à saúde mental mais humanizado e menos segregador. A rede substitutiva formada pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e residências terapêuticas tem buscado garantir que as pessoas com transtornos mentais recebam o tratamento necessário sem perder sua dignidade, seus direitos e, sobretudo, sua liberdade. A ideia central é que a liberdade é um direito humano fundamental, e o cuidado deve ser exercido respeitando a individualidade e as necessidades específicas de cada pessoa.

Entretanto, apesar dos avanços, ainda há muitos desafios a serem enfrentados, conforme aponta Túlio Franco. Segundo o psicólogo, Mestre e Doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp, nos últimos anos, em alguns estados brasileiros, há sinais de um retrocesso, com o reaparecimento de manicômios ou unidades de internação com práticas exclusivas de controle e isolamento. Isso ocorre em um contexto em que, muitas vezes, as redes substitutivas ainda mantêm lógicas disciplinares e de controle típicas dos manicômios, o que compromete a efetividade do modelo de cuidado.

Túlio Franco é psicólogo, mestre e doutor em Saúde Coletiva. Imagem Reprodução YouTube.

Reeducação profissional e as práticas de cuidado

Um dos principais obstáculos para a consolidação de uma saúde mental mais inclusiva e libertária é a resistência à mudança entre os próprios profissionais da saúde mental. Muitos dos trabalhadores da área, que passaram anos imersos em práticas disciplinadoras e isoladoras, ainda encontram dificuldades para adotar um modelo de cuidado que respeite a autonomia e a voz das pessoas com transtornos mentais.

Segundo o especialista, é necessário um processo contínuo de educação permanente para que esses profissionais incorporem valores humanitários e transformadores em suas práticas, reconhecendo que a pessoa com transtorno mental não é uma doença, mas um cidadão com direitos.

“Muitas vezes isso não foi completado, esse processo de reeducação dos trabalhadores para que eles adotassem novas práticas humanitárias, libertárias, reconhecesse a pessoa no transtorno mental como esse outro que tem direitos, que é cidadão, que pode opinar sobre as coisas. Então, eles acabam repetindo um regime disciplinar muito forte, como se repetisse em alguns lugares práticas manicomiais”, destaca.

A educação permanente é, portanto, fundamental. Ela envolve a análise crítica do trabalho cotidiano, com o objetivo de identificar e transformar práticas que reproduzem formas de controle e segregação. Esse processo é essencial para que o atendimento à saúde mental seja verdadeiramente libertário e inclusivo, proporcionando à pessoa a oportunidade de expressar suas próprias necessidades, participar das decisões sobre o tratamento e viver em liberdade.

O diagnóstico, quando feito de forma reducionista, pode resultar na desumanização do indivíduo. Imagem Reprodução Freepik.

A importância do diagnóstico e os desafios do estigma

Outro ponto crucial no debate sobre a saúde mental é a forma como o diagnóstico de transtornos mentais é tratado. O diagnóstico, quando feito de forma reducionista, pode resultar na desumanização do indivíduo. Muitas vezes, o paciente deixa de ser visto como uma pessoa com história, identidade e potencialidades, para ser estigmatizado como “o psicótico” ou “o esquizofrênico”, uma etiqueta que limita sua participação na sociedade e perpetua o estigma da incapacidade. 

“Então, esse é o grande problema, que é quando se faz um diagnóstico, pessoa com transtorno mental, imediatamente aquela pessoa deixa de ser uma pessoa e ela passa a ser uma doença. É assim que é feita essa, essa, como diz Deleuze, filósofo disso, uma transformação incorpórea, ou seja, deixa de ser o José, a Maria, o Mário, que é um pai, que é um avô, que é um tio, e passa a ser o psicótico, o esquizofrênico. Então, esse rótulo, ele cria o estigma, isola a pessoa, desqualifica a pessoa, coloca ela numa situação de uma pessoa incapaz de viver na sociedade, de ser produtiva e de ter uma vida” contextualiza o também professor.

Franco ressalta que o diagnóstico, muitas vezes, é utilizado de maneira patologizante, não apenas por profissionais de saúde, mas também pela indústria farmacêutica, que lucra com a medicação de transtornos mentais.

O Projeto GAN (Gestão Autônoma da Medicação), inspirado em experiências internacionais, representa uma alternativa importante, pois busca colocar o paciente no centro do processo, permitindo-lhe gerir sua própria medicação com o apoio dos profissionais. Essa prática permite uma abordagem mais personalizada e respeitosa, que tem mostrado bons resultados em diversos locais no Brasil.

Contexto atual e o sofrimento psíquico na sociedade contemporânea

Túlio Franco ainda reflete que o cenário social atual, com violência crescente, crises ambientais, guerras e os efeitos da pandemia de COVID-19, tem gerado um aumento significativo do sofrimento mental. Depressão, ansiedade, suicídios e agressões têm se tornado mais frequentes, refletindo um ambiente cada vez mais hostil e imprevisível. Esses fatores têm um impacto profundo na saúde mental das pessoas, tornando ainda mais urgente a necessidade de políticas públicas que promovam bem-estar e resiliência.

“O contexto em que se vive tem gerado mais sofrimento mental, não tenho a menor dúvida disso. Na pandemia, nós vivemos também uma segunda pandemia, que foi de saúde mental, com aumento dramático de problemas de saúde mental, tanto problemas de angústia, melancolia, depressão, houve aumento de suicídio, aumento da violência, tem dados que mostram aumento de feminicídio, mas mesmo depois da pandemia, é só nós olharmos no nosso entorno e ver a noticiário todo dia, você vê que o mundo está muito mais violento, muito mais hostil, e tudo isso impacta nas pessoas de alguma forma, para o seu cotidiano, tudo isso tem efeitos na pessoa, nos seus afeto”, conclui.

A saúde mental, portanto, precisa ser abordada de forma ampla, considerando os fatores sociais e ambientais que afetam o bem-estar das pessoas. O cuidado à saúde mental não pode ser isolado, mas deve estar integrado ao contexto social e cultural de cada indivíduo, respeitando suas diferenças e necessidades.

Apesar dos avanços, o caminho ainda é longo. É necessário continuar a luta pela desinstitucionalização, combater o retrocesso e garantir que o sistema de saúde mental no Brasil seja cada vez mais inclusivo, humanizado e baseado na liberdade. O cuidado com as pessoas com transtornos mentais deve ser visto como um direito fundamental, e não como uma exceção ou um privilégio.

O movimento antimanicomial, com seus princípios de inclusão, autonomia e respeito aos direitos humanos, segue sendo uma importante referência na construção de um sistema de saúde mental mais justo, ético e acessível a todos.