CRÔNICA

Só as batatas-doces são felizes

O reino vegetal sem frescura

Imagem: Google Gemini
Imagem: Google Gemini

A cozinha sempre estava com um cheiro. Cheiro bom, cheiro de tempero, cheiro de vida, cheiro de comida de vó.

O marido implicava, achava que a cozinha sempre tinha cheiro ruim. 

– Também, com todas essas frutas e verduras, sempre tem alguma coisa podre aqui nessa cozinha … pra que comprar isso tudo?

Ele odiava uvas, e odiava vegetais, especialmente os brócolis, que pra ele tinham cheiro de gases, de peido mesmo. Então, se ela comprava brócolis, imediatamente ele dizia que tinha algo de podre no reino dos vegetais. 

Um dia ela comprou brócolis numa embalagem bem lacrada, impossível de transpirar qualquer odor. Quando abriu a geladeira, imediatamente ele avisou, vendo seu inimigo em primeiro plano:

– Tem alguma coisa podre aqui! Aposto que é o brócolis. Olha a cara disso, que infeliz, que verdura mais triste e fedorenta.

Ela, já sabendo a resposta, perguntou:

– Tem certeza que é o brócolis?

Com a certeza de quem é guiado pela implicância, ele fez um longo discurso sobre a geladeira, que até ontem tinha cheiro bom _ apesar dela sentir o cheiro da cerveja choca aberta e da poça do sangue da carne do churrasco da semana passada _ e mais discursos de bla bla brócolis …

Um pedaço de repolho roxo murcho e esquecido esperava pra ser descartado, mas foi ignorado, sendo o foco do marido o suposto body odor do brócolis.

Ela já cansada da brocolisfobia dele, parou pra admirar a fruteira.

Estava cheia de verduras e frutas que ela amava, no auge do seu esplendor. Tinha as cebolas, que apesar de saudáveis, costumam mentir a idade, e poderiam estar por ali há 3 dias ou 3 semanas. O gengibre, mesmo mutilado, conseguia brotar e seguir a vida. Os limões, já amarelados e mais ácidos que o normal, pareciam entediados. As batatas, ofendidas pelo desprezo, lançavam brotos por todos os lados, anunciando a idade avançada.

As mais alegres eram as batatas-doces. A idade lhes caía bem, e os ramos que cresciam diariamente do corpo delas sapateavam na cara das companheiras que elas haviam encontrado a fonte da juventude, compartilhando sua força e imortalidade pelos galhos que cresciam sem parar pela fruteira da cozinha.

Ela já nem ouvia mais o que o marido resmungava em segundo plano, feliz de ter aquele mundo colorido ao redor. Juntou todos os vegetais perdidos e fez um grande yakisoba, uma limonada suíça e uma salada de frutas. Restou na fruteira a floresta de batatas-doces, aguardando pacientemente a chegada das novas companheiras e o dia em que seriam transferidas para o canteiro para procriar livremente.