Opinião

O ICMS e a burocracia necessária

O ICMS e a burocracia necessária

Apesar da expectativa contrária, 2021 começa com aumento de ICMS no Rio Grande do Sul.

Combustíveis, energia elétrica e telefonia teriam a alíquota de 25% a partir desse ano. Mas continuarão em 30%, patamar que era para ser apenas um aumento provisório. Nunca esqueçam que essa alíquota é nominal. Porém, como o cálculo do ICMS é por dentro, a efetiva é de 42,86%.

Mas gostaria de destacar outro ponto, de certa forma, ainda mais grave.

Existem dois tipos de formalidade. Aquela formalidade excessiva. A burocracia conhecida por todos, que exige a forma pela forma. Na maioria das vezes sem nexo algum.

Muito bem ilustrada na série de comédia A Very Secret Service (veiculada no Netflix). Nela um agente novato, do serviço secreto francês, consegue eliminar dois espiões de um grupo terrorista. Em vez de ser premiado, ele é punido, pois não carimbou o relatório de conclusão da missão. A condecoração foi para seu colega, muito mais sênior, e que nunca tinha desconfiado dos tais espiões.

E existe a formalidade necessária. Que tem razão de existir. É a forma que serve para melhorar a substância. Para promover segurança. E legitimar o conteúdo. É o caso, por exemplo, do devido processo legal. Da necessária análise de um Juízo para condenar alguém à prisão, etc.

A Lei aprovada pela Assembleia Legislativa (15.576/20), a partir de Projeto de Lei proposto pelo governador do Estado (PL 246), padece de gravíssima irregularidade.

Foi abertamente desrespeitada uma norma muito clara sobre o processo legislativo. Existe no Brasil uma lei que diz como as leis devem ser redigidas. Uma das regras determina que cada lei tratará de um único objeto, com a exceção de códigos. E que a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão.

A lei que aprovou o aumento do ICMS não tratou só do aumento da alíquota de produtos. Ela tem diversas novas regras, sobre assuntos extremamente variados.

Além de aumentar as alíquotas de ICMS, a lei (i) instituiu um Código de Boas Práticas Tributárias; (ii) criou Câmaras Técnicas Setoriais (com uma estrutura burocrática); (iii) criou o Programa de Estímulo à Conformidade Tributária; (iv) redefiniu a infração tributária; (v) instituiu novas infrações tributárias com definição de penalidades que chegam a 10% do valor das mercadorias transportadas; (vi) definiu hipóteses em que se presume a ocorrência do fato gerador do ICMS; (vii) previu hipóteses de responsabilidade solidária; (viii) previu hipóteses de suspensão de inscrição estadual; (ix) modificou regras do processo administrativo; (x) modificou regras para cobrança judicial de dívidas tributárias, dentre tantas outras modificações, etc.

A matéria é bastante técnica. É árida. A visualização dos impactos é complexa. Mas as implicações no dia a dia são grandes. Veja-se o seguinte caso:

A lei modificou prerrogativas de funcionários públicos. Ela determinou que parcelamentos poderão ser concedidos por Auditores da Receita Estadual e não mais apenas pelo Subsecretário da Receita Estadual (cargo de chefia). Da mesma forma, Procuradores do Estado poderão conceder parcelamento, e não apenas o Procurador Geral. Por um lado, isso é bom, pois agiliza o processo de concessão de parcelamentos. Mas por outro, pode vir a violar a concorrência. Imagina se o auditor que fiscaliza seu concorrente concede a ele um parcelamento. Mas o auditor que fiscaliza sua empresa não lhe concede o parcelamento?

Ainda que as matérias pareçam tratar todas de tributário, a rigor a lei trata de matéria processual, de penalidades, de estrutura funcional, de criação de órgãos, de instituição de políticas gerais, de código, etc.

Fato é que a análise de tudo isso foi feita em não mais que 45 dias. Por pura pressão do Governo que precisava da aprovação antes do final de 2020 para valer já em 2021.

A regra, muito clara, de que cada lei deveria tratar de um único objeto, serve justamente para evitar o que ocorreu. Você interessado no assunto, em algum momento sabia que tudo isso estava no projeto? A sociedade organizada efetivamente discutiu se gostaria de ter mais penalidades tributárias? Ou criar comitês? Ou mudar prerrogativa de funcionários públicos?

A sociedade estava mais atenta, e como toda razão, ao aumento ou não do tributo. Mas ganhou de presente uma miscelânea de normas novas.

A formalidade necessária (cada lei com um só objeto) que permitiria uma discussão apropriada e extensa de cada tópico, foi abertamente violada. E agora para ser revertida, só se for combatida na Justiça.

Mas fique atento! Não esqueça nunca do carimbo. Você pode ser punido. E alguém premiado.