Opinião

O crime de homicídio não deveria prescrever

Foto: Arquivo Leouve
Foto: Arquivo Leouve

Cláudia Hartleben, professora da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) está desaparecida desde a noite de 9 de abril de 2015. Naquela ocasião, Cláudia tinha ido visitar uma amiga, Eliza Komninou, e, de lá, rumou para a residência onde morava. Na manhã seguinte, a professora deveria da aula na Universidade, mas nunca mais apareceu. Câmeras de vigilância detectaram a carro de Cláudia nas cercanias de sua casa, mas nada da pessoa de Cláudia aparecer. Lá se vão mais de cinco anos e nada de notícias da Cláudia, tampouco um corpo.

Mesmo assim, em sua autonomia e independência funcional, o Ministério Público se convenceu de que havia materialidade de um crime contra a vida, como indícios de autoria. Assim, denunciou o ex-marido João Morato Fernandes e o filho João Félix Hartleben por homicídio qualificado, feminicídio e ocultação de cadáver. No entanto, a Justiça entendeu que as provas não autorizavam uma ação penal (compreendendo-as em um contexto de mera suspeita) e rejeitou a denúncia.

O então Promotor de Justiça do caso, José Olavo Passos, hoje aposentado, recorreu da decisão. Na época, também confirmou que Cláudia Pinho Hartleben era ameaçada, dizendo que havia, nos autos do inquérito policial, depoimentos de que, caso acontecesse algo com ela, aquilo não seria descoberto. Tudo em um contexto de que João Morato Fernandes teria sido anteriormente denunciado por violência doméstica contra Cláudia, isso nos idos de 2013. O recurso não foi provido, mantendo-se hígida, assim, a garantia da presunção de inocência dos implicados.

O fato é que Cláudia nunca mais foi vista. Nunca mais fez contato com a família. As investigações prosseguiram, mas nenhuma outra pista aportou no inquérito policial. Em sendo assim, o Ministério Público Estadual resolveu promover o arquivamento do expediente policial, ante o exaurimento da investigação sem sucesso na identificação do que aconteceu com Cláudia Pinho Hartleben. Muito provavelmente ela está morta.

Você pode perguntar: – “se não há um corpo, como pode haver uma denúncia por crime de homicídio?” “Cláudia Pinho Hartleben era adulta. E se ela resolveu, por vontade própria, desaparecer”, começar uma outra vida em outro lugar?”

Como regra, afirmo, com toda certeza, que uma denúncia de homicídio sem um cadáver não é possível. Nele reside a prova material do crime. A certeza do delito. Todavia, excepcionalmente, pode haver denúncia pela prática de homicídio sem um corpo.

Quando isso poderá acontecer? Quando as provas indiretas em torno do crime dão uma certeza, acima de uma dúvida razoável, de que a vítima está morte (o corpo de delito), sejam elas testemunhas ou eventualmente outras as provas indiciárias convincentes.

São muitos os casos no Brasil em que se denunciou, processou e condenou por homicídio sem que houvesse um corpo, casos em que a morte foi considerada certa, acima de qualquer dúvida razoável. A história reporta, a título ilustrativo, um caso ocorrido no Rio de Janeiro, no início da década de 60, no Século XX.

Na ocasião, o corpo da vítima também nunca apareceu. Ela havia acabado de se separar do embaixador brasileiro Manuel de Teffé Von Hoonholtza. Numa viagem com o advogado Leopoldo Heitor, ela simplesmente desapareceu. O advogado sustentou na época, que ela teria sido sequestrada após um assalto. Entretanto, os indícios de autoria de um homicídio recaíram sobre ele que, à sua vez, foi Julgado pelo Tribunal do Júri, tendo sido condenado num primeiro julgamento, e absolvido no segundo.

Outro caso bastante famoso configura o maior erro judiciário de todos os tempos: o Caso dos Irmãos Naves. Na comarca de Araguari-MG, dois irmãos – os irmãos Naves – foram condenados injustamente por uma morte que não existiu. Quinze anos depois da condenação, quando um dos condenados já havia inclusive morrido dentro da prisão. Na época, o Tribunal do Povo havia absolvido os irmãos Naves e, suprimida, àquele tempo, a soberania dos veredictos, os réus foram indevidamente condenados em sede de apelação.

Outro caso emblemático é o da Eliza Samúdio (assassinada pelo Ex-Goleiro Bruno e outros), cujo corpo não apareceu. Na hipótese, ao menos houve confissão do crime em Plenário de Júri, quando Bruno e outros admitiram que ela estava morte.

O caso de Cláudia Pinho Hartleben a dificuldade ainda é pior. Não há corpo, não há a quem culpar e a tentativa de responsabilização penal já realizada foi inexitosa.

Que triste. O crime de homicídio não deveria prescrever. Não entendo um sistema que não deixa prescrever crime de raça, mas deixa prescrever um crime contra a vida, dizendo-se estruturado na dignidade humana.