Todo mundo sabe, o fim de uma coisa é também o começo de outra, e a história da Dona Olga vai recomeçar aqui.
Enquanto a família montava um circo de suposições do porquê de o Seu Ernesto ir embora depois de 50 anos de casados, tentando tomar decisões como se Dona Olga não estivesse presente, ela pediu que todos fossem embora “já que amanhã é segunda-feira, dia de faxineira.”
Acalmou todos dizendo que só queria acordar cedo e, por enquanto, continuar a vida como se nada estivesse acontecendo. Todos se despediram dizendo que “qualquer coisa é só ligar que a gente vem na hora.”
Olga, aliviada por ficar finalmente sozinha, foi procurar um sentido para aquilo tudo, e resolveu começar procurando o que afinal o Ernesto tinha lido.
Procurou nos livros de cabeceira, na sala, no banheiro dos fundos, até que chegou no computador do escritório, mas nada. Olhou pra impressora, com a capa de couro jogada de lado, o que chamou sua atenção. Se aproximou e pegou a folha impressa, que continha a “Canção da mais alta torre”, de Arthur Rimbaud. Leu, releu, e começou a chorar, copiosamente.
Lembrou de quando conheceu Ernesto, muito tímido e sério. Namoraram e logo casaram. Tia Lucinha, a irmã solteira do seu pai, foi contra. Dizia que Olguinha era muito inteligente e teria um futuro de verdade se não casasse e se dedicasse à sua carreira. Até o filho mais velho nascer, os dois trabalhavam, mas Olga logo largou o emprego para dar conta dos filhos, da casa e do Ernesto, que a exibia com orgulho pelos seus dotes de decoração, limpeza e organização. As reuniões das datas comemorativas ou com amigos eram sempre na casa deles, pois Ernesto não gostava de ir à casa dos outros, e Olga cozinhava como ninguém.
Mergulhada nas lembranças, reviveu o dia em que a mãe e a sogra, sentadas na sala enquanto Olga servia, limpava e cuidava das crianças, criticaram a sua aparência, pois “a esposa deve estar sempre tão impecável quanto a casa e as crianças”. Olga mal tinha tempo de terminar suas tarefas domésticas, cuidar de si mesma, então, nem pensar. Mas Ernesto se juntou a elas, dizendo que Olga já tinha sido muito mais bonita e atraente quando trabalhava fora, coisa que dá muito mais trabalho do que ficar o dia inteiro em casa, não é mesmo?
Naquele momento, Olga se tornou a Dona Olga, perfeccionista e incansável na arte de cuidar e agradar aos outros.
Pensou no dia em que falou para o marido, com os filhos já adolescentes, que tinha vontade de voltar a trabalhar, recebendo a resposta de que ela já não conseguiria voltar para o mercado de trabalho, muito menos alguém saberia cuidar da casa, dos filhos e do marido com tanta perfeição como ela, depois de sua mãe, claro.
Voltou a pensar na mãe e na sogra, mulheres fortes e cheias de talentos, mas que passaram a vida obedecendo ao mestre da casa, arrumando, servindo e cuidando. Dos outros.
Nesse momento, Olga parou de chorar e sentiu um alívio imenso. Finalmente poderia não ser mais perfeita nem sofrer a exigência de ser perfeita e a guardiã não eleita da casa e da família. Lembrou das aulas de surf e canto que sempre quis fazer, e das viagens para a praia com as amigas que ela sempre evitou.
Sorriu, riu e agradeceu ao Ernesto em voz alta, por ter sido tão indelicado e honesto, fazendo com que ela não perdesse mais a vida.
O passarinho que saiu voando nunca notou que a gaiola sempre esteve aberta e, agora que ele se foi, a gaiola também estava livre.