
Lembro-me perfeitamente da sensação. Por anos, convivemos com as injustiças que pareciam parte do esporte. O gol de mão de Maradona em plena Copa de 1986; o gol não validado de Lampard pela Inglaterra contra a Alemanha no Mundial de 2010. Eram os “erros humanos” que decidiam campeonatos e nos deixavam com um gosto amargo na boca. Por isso, quando o VAR começou a ser testado e finalmente implementado de forma global, por volta da Copa do Mundo de 2018, confesso que fui um dos que celebrou. Finalmente, pensei, a tecnologia traria um fim a esses fantasmas. A promessa era de um futebol mais justo, onde “erros claros e óbvios” seriam coisa do passado. A missão era nobre: intervenção mínima para um benefício máximo.
No entanto, a lua de mel acabou. O que vejo hoje em campo, rodada após rodada, é uma distorção preocupante daquela ideia original. A ferramenta que veio para ser a solução se tornou parte fundamental do problema. E o paradoxo que vivemos hoje é o seguinte: a tecnologia que foi criada para evitar erros graves está, por meio de interpretações equivocadas, produzindo novos erros graves e interferindo diretamente na essência do jogo.
A minha percepção é que o VAR é brilhante para uma coisa: a certeza factual. A bola cruzou a linha? O jogador estava milimetricamente impedido? A falta foi dentro ou fora da área? Para essas perguntas de “sim” ou “não”, a tecnologia é implacável e precisa. Mas o futebol não é feito só de fatos. Ele vive da interpretação, do contexto, da intensidade. E é aí que, na minha visão, a ferramenta falha miseravelmente.
O que estamos vendo é a substituição do erro de fato pelo erro de critério. A câmera em super slow-motion (câmera superlenta) se tornou uma inimiga do bom senso, transformando contatos mínimos em agressões dignas de cartão vermelho. A regra da mão na bola virou uma loteria, pois a imagem mostra o toque, mas é incapaz de julgar a intenção ou a naturalidade do movimento. A subjetividade não foi eliminada; ela apenas mudou de endereço. Saiu do gramado e se trancou em uma cabine com monitores, onde árbitros agora “procuram” por infrações que ninguém em campo, em velocidade normal, jamais notaria. Isso vai contra todo o princípio do erro “claro e óbvio”.
O Impacto do VAR na Alma do Jogo
E o impacto mais doloroso, para mim, é na alma do jogo. Aquele grito de gol, a explosão de alegria… hoje ele fica preso na garganta. A comemoração espontânea foi substituída por uma espera angustiante, com todos os jogadores e torcedores olhando para o telão. O ritmo do jogo é constantemente quebrado. A autoridade do árbitro de campo, que deveria ser a figura máxima, está enfraquecida, muitas vezes reduzida a um mero executor de decisões tomadas a quilômetros de distância.
Então, o que fazer? Desistir da tecnologia? Acredito que não. O caminho não é voltar à idade da pedra, mas reformar a aplicação do VAR de forma inteligente. Precisamos devolver o poder ao conceito original. O VAR só deveria intervir em erros absurdos, daqueles que envergonham a arbitragem. Se um lance precisa de cinco minutos e dez ângulos para ser decidido, ele simplesmente não é “claro e óbvio”. Além disso, por que não podemos, como em outros esportes, ouvir a comunicação entre a cabine e o campo? A transparência geraria confiança.
O desafio, para mim, é claro: precisamos encontrar um equilíbrio para que a tecnologia sirva ao futebol, e não o contrário. Quero de volta a justiça que o VAR prometeu, mas sem que, para isso, tenhamos que sacrificar a emoção, a fluidez e a paixão que nos fizeram amar este esporte em primeiro lugar.