![A decoradora que odiava livros A decoradora que odiava livros](https://uploads.leouve.com.br/2025/02/38lUdj5E-a-decoradora-que-odiava-livros-png.webp)
Marcos entrou em casa, não sem antes tirar os sapatos. Pensando bem, era bom tirar as meias também, porque estavam meio fedidas.
Respirou fundo, longe do seu próprio odor corporal, e sentiu aquele cheirinho de limpeza.
- Uma misturinha poderosa que aprendi na internet, costumava dizer Dona Lucineide, a faxineira dissonante de Marcos e Denise.
- Adoro o dia que a Dona Lucineide vem aqui, pensou em voz alta.
- Ahh Marcos, para com isso. Se você cuidasse um pouco mais e não deixasse seus sapatos e tênis jogados pela casa o cheirinho bom ia durar muito, retrucou Denise. E além do mais, a Dona Lucineide agora administra uma rede de faxineiras e só vem quando não acha outra. Quem veio aqui hoje foi a irmã dela, a Lucilene.
Marcos suspirou, agora pra exalar o desconforto de viver numa casa recém faxinada onde a esposa não gostava que ele deixasse as coisas jogadas, pelo menos nos dois primeiros dias após a faxineira vir.
Mas afinal, quem liga para esses detalhes de arrumação? Uma casa muito arrumada não tem vida, disse ele só pra si mesmo, pra não começar uma discussão.
Lembrou daquele dia que uma delas deixou os tapetes empilhados, os porta-retratos trocados, as lixeiras sem sacos e os panos de limpeza pra esposa lavar. Denise não falava nada, mas depois não parava até colocar as coisas no que achava ser o lugar certo delas, e deixar reto tudo que estava de ladinho pela casa inteira. Que perca de tempo!
Na verdade Marcos detestava a casa arrumada. Seu passatempo favorito era revirar e arrastar a ponta dos tapetes. – Parece que tem gancho nos pé, reclamava a mãe desde que ele era pequeno, enquanto recolocava os tapetes no lugar. Na lógica de Marcos, os potes de bolacha, a água, o leite e as panelas no fogão, tudo que tinha tampa pra abrir, não precisava ser fechado nem colocado de volta no lugar, porque magicamente tudo reaparecia fechado e no local de origem. Óbvio que ele sabia que as roupas não se lavavam, dobravam e muito menos se guardavam sozinhas, mas nunca se importou muito com quem fazia isso, nem quando e nem porque.
- Tudo isso são coisas, e não são importantes. A estética, a disposição, o lugar, tudo bobagem.
- Ahh tá Marcos, pode até ser, mas e quando você quer achar alguma coisa? Não é mais fácil numa casa arrumada?
O argumento não convencia Marcos, que achava tudo isso um exagero.
Mas naquele dia que a irmã da Dona Lucineide foi lá, ele sentiu que tinha algo diferente na casa. Não sabia dizer o que era porque parecia igual, fora o cheiro da misturinha da Dona Lucineide, tudo sempre tava igual, antes dela ir ou depois.
Sentaram na mesa de jantar, tomando uma bela taça de vinho e conversando desanimadamente quando Marcos ficou pálido e deu um grito de pavor. Denise se assustou mas esperou ele dizer o que tinha acontecido.
Sem conseguir falar, Marcos apontou para a estante que cobria toda parede no fundo da sala. Era uma estante de madeira cheia de livros, comprados, acumulados, roubados, ganhados. De todas as cores, autores, assuntos, gêneros e tamanhos.
Estranhamente parecia que os livros tinham sido apagados. As capas, antes coloridas e escritas, estavam brancas, mais pálidas do que Marcos.
- O que aconteceu com nossos livros ??
Denise não respondeu, mas levantou e caminhou desconfiada até a estante, enquanto Marcos não conseguia se mexer, como se uma notícia devastadora tivesse acabado de chegar.
Quanto mais se aproximava, mais estranho ficava. Os livros estavam lá, mas era como se não existissem. As palavras tinham sido roubadas e as histórias apagadas.
Marcos, em estado de choque, pensava que nunca mais ia conseguir ler aqueles 80% dos livros que estavam ali e que ele sempre deixava pra ler depois.
Denise finalmente chegou à estante e começou a rir, o que irritou Marcos.
- O que pode ser tão engraçado numa tragédia dessas? Como você pode rir numa situação dessas? Você nunca gostou dos meus livros mesmo, por isso tem aquela pilha lá do seu lado da cama né? Esses livros aqui não dizem nada pra você não Denise?
Denise retira um livro da estante e mostra pra Marcos o livro invertido.
- Meu Deus Marcos, para de ser dramático! A irmã da Dona Lucineide limpou a estante e deve ter colocado os livros ao contrário, sem querer.
- Mas por que alguém em sã consciência guardaria os livros ao contrário numa estante Denise? Ela me odeia porque faço muita bagunça na casa? Ela não gosta de ler? Ela não enxerga bem? Não se faz isso com um livro!
- Chega Marcos, amanhã eu pergunto pra ela, mas até lá, relaxa e pensa como foi engraçado você pensar que os livros tinham sido apagados.
- Engraçado pra você, que não liga. Não sabe que eles estavam arrumados por assunto, que cada um tem seu nicho e ordem na estante?
- Mas você nem pega neles Marcos, não leu quase nenhum deles e só gosta de olhar eles parados ali, estáticos na estante, como troféus do que você acha interessante e pode comprar, sem nunca usar.
- Não interessa Denise, agora eu só quero meus livros de volta e saber porque ela fez isso.
Denise terminou o jantar, o vinho e foi dormir, enquanto Marcos recolocava os livros mais ou menos como eram, parando a cada descoberta de títulos que nem sabia mais que tinha, e não encontrando outros que gostaria de ler.
Denise ligou e descobriu que na verdade Dona Lucineide queria agradar, mandando a irmã fazer uma decoração igual a de um vídeo que viu na internet, onde a decoradora dizia que chique mesmo era ter livros ao contrário na estante, porque assim eles ficavam todos da mesma cor, harmonizando melhor o ambiente.
Daquele dia em diante, Denise passou a dizer o que queria que fosse feito na casa, e Marcos nunca mais deixou nada destampado. Dona Lucineide não trabalha mais pra eles porque virou influencer dando dicas de como cuidar e decorar a casa.