Memória LEOUVE

Kraftwerk - A vanguarda na churrascaria

Kraftwerk - A vanguarda na churrascaria

O Kraftwerk foi o mais influente grupo alemão de música pop. A banda de Florian Schneider e Ralf Hutter surgiu na melhor época do rock alemão, a única que produziu um estilo original – diferente do rock americano e inglês -, entre o final dos anos 60 e a segunda metade dos anos 70.

 

Segundo David Buckley, autor da biografia “Kraftwerk Publikation”, a “música cósmica” de grupos como Amon Duul, Kluster, Can, Faust, Neu, Tangerine Dream, era um desdobramento da música de vanguarda com o experimentalismo do rock e do jazz. De “música cósmica” passou-se a empregar – para se referir a todos esses grupos – o termo Krautrock. Existem, apesar das diferenças, características que permitem catalogá-los em conjunto: o uso marcante de instrumentos eletrônicos – especialmente os sintetizadores – e o modo de produção independente.

 

Os grupos faziam happenings, criavam as capas para os álbuns e cartazes, fabricavam suas caixas de som, montavam estúdios caseiros, na melhor prática do conceito faça-você-mesmo. Criaram um sistema de produção independente, com muita rotatividade e intercâmbio de instrumentistas entre os grupos. Alguns, como o Kraftwerk, fundaram uma gravadora – com estúdios próprios – para gravarem seus discos. O Amon Duul sintetizava toda a cena que brotou – como cogumelos depois da chuva – na Alemanha ao final da década de sessenta: era um coletivo de artistas, de todas as áreas, que possuía uma banda de rock homônima.

 

Os melhores do Krautrock foram o Tangerine Dream, um trio de tecladistas, e o Popol Vuh, grupo de Florian Fricke, que faria uma música muito misturada, com rock, jazz, clássico e música “étnica”. As trilhas sonoras que Fricke criou para os filmes de Werner Herzog estão entre os melhores álbuns do Popol Vuh, como Coração de Cristal (1976) e Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972). Klaus Schulze, nascido da costela do Tangerine Dream, desenvolveria uma extensa discografia solo, em álbuns inteiramente gravados com a parafernália eletrônica disponível nos anos 70 e 80.

 

Da vanguarda eletrônica alemã oriunda da rádio WDR, que desenvolvera a música eletrônica “erudita” a partir do final dos anos 40, o Krautrock herdou a concepção do estúdio como laboratório para experimentação musical. Os grupos hippies alemães adaptariam o laboratório vanguardista aos anos psicodélicos da contracultura, criando o experimentalismo do Krautrock.

 

O Kraftwerk massificaria a concepção, levando a música eletrônica a todos os rincões do mundo, apresentando a artificalidade de um universo sonoro explicitamente eletrônico. Os próprios integrantes apresentavam-se como robôs. Os músicos eram máquinas tocando máquinas. Uma música industrial para a era industrial.

 

Paradoxos constituem a vida e a obra do grupo. A estética era moderna e antiga: moderna porque o grupo tocava e criava sons inauditos, usando equipamentos de última geração; antiga porque toda a sua concepção do futuro lembrava a ficção científica dos anos 40 e 50. O Kraftwerk era retro-futurista já nos anos 70. Toda a estética que o envolvia – nas capas, vídeos, figurino – era robótica, maquinal, artificialista.

 

O futuro enunciado nos discos era bastante desumanizado. Havia, por outro lado, uma projeção no passado, em discos como Trans-Europa Express, de uma Europa idealizada, como mostram as fotos do disco. A própria faixa Trans-Europa Express – uma obra-prima, no ponto mais alto da criatividade do Kraftwerk – é ao mesmo tempo futurista e nostálgica – oximoros musicais. A música sugere uma Europa unida espiritualmente através de seus cafés, ou festejando em um “rendez-vous aux Champs- Elysée”. O trem, que foi por muito tempo símbolo do progresso, é uma manifestação de europeísmo. O Expresso Kraftwerk procura a integração dos povos europeus.

 

Apesar da beleza melancólica da música, emerge o grotesco. Ouvindo Trans-Europa Express pensamos que os mesmos trens que conectam a Europa dos anos 70, transportavam condenados aos campos de concentração três décadas antes. O progresso, fascinante, vem acompanhado de horror. Na sonoridade moderna (para a época), a obra recua aos anos 50 – os cafés de Viena – para depois falar do futuro. A história e o futuro da Europa em sete minutos, no trem kraftwerkiano. Nostálgico e futurista – paradoxos de uma banda inapreensível.

 

Quando escutamos “Pocket Calculator”, do disco Computer World, que soa muito idiota em seu simplismo melódico, surge a pergunta: quanto do Kraftwerk era sério, quanto era ironia? Uma aura kitsch compõe todo o espectro de sua música. Os estereótipos de ordem e disciplina que sempre se atribuem aos alemães, foram levados ao extremo pelo grupo. Tornarem-se robôs era uma maneira muito alemã de fazer humor, levando a ordem e a rigidez da disciplina aos píncaros da artificialidade. Ninguém ri, mas não deixa de ser humor.

 

O que envelheceu na “filosofia do futuro” do Kraftwerk é que a robótica e as máquinas foram se humanizando cada vez mais. São, hoje, como animais de estimação (basta pensar no celular). Ao contrário de desumanizar, procuram nos re-humanizar. Se o futuro do Kraftwerk envelheceu, a música não: a ambiguidade kitsch, irônica, pós-humana do grupo, de certo modo permanece. Afinal, o ridículo está sempre na moda.

 

O Kraftwerk, com melodias simples e marcantes, transmutou o experimentalismo do Krautrock em música comercial. Foi influência definitiva na música pop, ao contrário de Tangerine Dream, Klaus Schulze ou Popol Vuh, que ficaram em zonas fronteiriças do rock experimental com a música eletrônica “clássica” de Stockhausen e Terry Riley. Boa parte da new wave dos anos 80 é tributária de sua música. Os ritmos repetitivos, dançantes, fáceis de ouvir e hipnóticos, aproximavam-no da disco-music e anteciparam a música eletrônica dos anos 90 e 2000. Era música dançante para robôs, mas dançante de todo jeito, envolto numa aura meio brega (futurismo brega?), como se o Kraftwerk tocasse música folclórica alemã no sintetizador. Uma performance de vanguarda na churrascaria?