Memória LEOUVE

Bundas

Bundas

Ziraldo convocou, no final dos anos 90, um time de escritores e cartunistas para criar uma revista semanal. Como o maior fenômeno editorial – e social – daquela década era a revista Caras, a publicação foi batizada de Bundas. Os bordões publicitários para o lançamento eram frases de efeito que declaravam as pretensões daquele grupo de intelectuais. Nas capas e campanhas de publicidade declaravam: “Quem mostra a bunda na Caras não mostra a cara na Bundas”, “Bundas – a cara do Brasil”; “Bundas: não contém piscinas, jacuzzi, alcovas, nem peruas”.

 

            Lembro de uma entrevista que Ziraldo deu para o Programa da Hebe, explicando a Bundas e criticando a Caras (ele, a cara da Bundas, ela, a cara da Caras – só podia ser a cara). Dizia Ziraldo: “No Brasil, não existe invasão de privacidade; existe evasão de privacidade, pois todo esse mundo faz questão de exibir sua intimidade”. Referia-se, claro, às matérias da revista que retratavam a vida artificial das celebridades, esse conceito confuso que reúne desde artistas importantes à jogadores de futebol, passando por dançarinas do Tchan e ex-BBBs. Isso foi em 1999, e nem Ziraldo, nem Hebe, nem eu – um adolescente – imaginávamos que, poucos anos depois, mais da metade da população brasileira teria sua própria revista Caras em redes sociais, praticando “evasão de privacidade”. Ao contrário da ficção cientifica que profetizava o Estado totalitário invadindo a intimidade dos cidadãos, as pessoas pavoneiam suas vidas pelo prazer de se exibirem. O narcisismo não deveria nos surpreender, mas na época de Bundas e Caras, coisas como Orkut, Facebook e quejandos, não pareciam tão próximos assim, ao menos não nas dimensões de hoje, em que a ostentação não é apenas entendida com naturalidade, mas também estimulada. A exposição da vida de celebridades em casas luxuosas ou na Ilha de Caras, em um país de miseráveis como o Brasil, era obsceno. Para o pequeno mundo pensante do país, a Caras representava o exibicionismo de novos-ricos e celebridades insignificantes.

 

            A Bundas era uma revista da esquerda festiva, seguindo a tradição do Pasquim, do qual herdara o espírito anárquico e alguns de seus colaboradores. À parte o nome contrapontístico e antagonista, o assunto da Bundas era política, e não uma sátira à Caras. A maior vítima do seu humor era o presidente Fernando Henrique Cardoso. Havia, sim, uma coluna social satírica de Nataniel Jebão, pseudônimo do escritor Fausto Wolff. O editorialista fixo era Luis Fernando Verissimo, e era com ele, em alto estilo, que se abria a revista toda a semana. Cartunistas como Adão Iturrusgarai, Tutty Vasques, Paulo e Chico Caruso, Laerte, Angeli, Jaguar, além de Ziraldo, e colunistas como Aldir Blanc, Sergio Augusto, Millôr, Fernando Gabeira, criaram essa revista que era uma esculhambação inteligente, com o melhor do humor e do jornalismo brasileiros. Vocacionada para a galhofa, o achincalhe, o sarcasmo e a pilhéria, tinha, entretanto, artigos mais sérios do que a chamada imprensa séria.   

 

 

            O problema da Bundas era justamente o nome, que não atraía investimentos publicitários. Nenhuma empresa vincularia seu nome a um semanário chamado Bundas, cuja pretensão era concorrer nas bancas com a Veja, a Isto É e a Época. Em menos de dois anos de vida, a revista não teve um anunciante sequer. A vendagem era pouco expressiva e não permitiu seu sustento.

 

            A Bundas, sempre com semblante tão alegre, fechou. Nós, leitores, ficamos com cara de bunda. Em 2002, Ziraldo estreou o Pasquim 21, publicado em papel jornal, formato standard. A iniciativa foi muito criticada por antigos colaboradores do Pasquim original, que não gostaram da ideia de se aproveitar da fama do mais icônico e mitológico jornal de oposição à ditadura. O Pasquim 21 também durou pouco e fechou em 2004. Antes ainda da Bundas, Ziraldo criara a revista Palavra, que, como as outras, teve vida curta. Por tudo isso, Ziraldo declarou ser “o maior fracasso editorial do Brasil”. O que é mentira, pois, ao menos em livro, Ziraldo é um sucesso. “O Menino Maluquinho”, publicado em 1980, é um fenômeno editorial, um best-seller até hoje.

 

            Em 2008, Ziraldo e Jaguar receberam do governo, pelas mãos do ministro da justiça Tarso Genro, as mais vultosas indenizações aos prejudicados pelo regime militar. Cada um recebeu mais de um milhão de reais, além de pensão vitalícia de mais de 4 mil reais ao mês. Millôr Fernandes, que se negou a receber indenização, escreveu sobre os colegas do Pasquim: “Quer dizer que aquilo não era rebelião, era investimento”. Depois do milhão e da pensão, Ziraldo não sentiu desejo de fundar revista alguma. Ficou com cara de bunda.

 

            É uma pena o fracasso de Bundas, do Pasquim 21, e o maior fracasso de todos: Ziraldo ter aceito a indenização como vítima da ditadura. Como esses humoristas se comportariam no governo Lula? E no de Dilma? Verissimo, depois de 8 anos criticando F.H.C na imprensa diária, a partir do governo Lula ficou sem assunto e passou a escrever três dias por semana.  De satirista de Fernando Henrique, converteu-se em advogado de Lula. À época da posse, quando F.H.C passou a faixa presidencial à Lula, Verissimo escreveu: “Do último Bragança ao primeiro Silva”. É uma grande frase, sem dúvida, mas esqueceu de pô-la na boca da Velhinha de Taubaté, aquela senhora que acredita em tudo que o governo diz.

 

            Outros continuam na praça, como José Simão, franco-atirador sem rabo-preso com o PT. O desemprego da maioria dos humoristas integra a falência da imprensa escrita. O humor, gráfico e escrito, perdeu muito espaço com a internet. Amadores fazem fotomontagens, textos, qualquer coisa, e os distribuem pela Rede. Além de Bundas, publicações como Casseta e Planeta e a icônica Chiclete com Banana, que marcaram época nos anos 80 e 90, fazem muita falta. Laerte, que foi fundador da Chiclete e colaborador de Bundas, ficou mais famoso por ter virado um travesti sem graça do que quando era apenas cartunista. Laerte, ou Sônia – como passou a se chamar – representa a falta de rumo do humor na imprensa: transformou-se a si mesmo em uma body-art. Uma body-art que dá entrevistas.