Sabe aquele feijão que só a nossa mãe sabe fazer? Ou o sabor e o aroma da sopa da vó? Inesquecíveis, não é mesmo? Alguns pratos atravessam gerações e se tornam parte das nossas memórias afetivas mais profundas.
A lembrança desses sabores é um traço cultural tão forte que muitos sociólogos afirmam: a gastronomia é um dos aspectos mais duradouros de uma cultura. E, quando pensamos na herança italiana na Serra Gaúcha, isso fica ainda mais evidente.
Foi assim que a polenta chegou por aqui, trazida pelos imigrantes italianos. Para a pesquisadora e escritora Rosana Pecini, ela tem um papel simbólico e prático importantíssimo:
“A polenta é o prato que não deixou ninguém passar fome, nem lá nem aqui. A polenta nunca deixou de sustentá-los.”
Mas, como a polenta não supria todos os nutrientes necessários, era preciso complementar. Rosana explica que, por instinto e tradição, o homem do meio rural é caçador, e, naturalmente, as aves entraram no cardápio. Assim, o galeto foi ganhando espaço, se aperfeiçoando e, com o tempo, conquistando status.
Uma experiência gastronômica completa
Quem mora na Serra Gaúcha, ou já passou por aqui, sabe: o galeto vai muito além da ave assada com maestria. Sentar-se em uma galeteria é mergulhar numa experiência gastronômica completa e farta. Tem pão, sopa de agnoline, salada de radicci com toucinho torrado, salada de batata, espaguete ao molho de miúdos, polenta frita e, claro, galeto. Quando as travessas começam a esvaziar, lá vem o garçom com tudo de novo, fumegando. Para finalizar, sagu com creme ou pudim de leite. Uma verdadeira celebração!
É ou não é a terra da Cocanha? Aquela lenda europeia que falava de um paraíso onde o vinho jorrava em fontes, os salames pendiam das árvores e tudo era farto e generoso. Pois aqui, essa lenda ganha contornos bem reais toda vez que entramos numa galeteria ou restaurante típico italiano.
O Galeto como Patrimônio Imaterial
A importância do galeto é tamanha que, em 2013, ele foi reconhecido oficialmente como Patrimônio Histórico Imaterial. O reconhecimento veio a partir da pesquisa da própria Rosana Pecini, no Mestrado em Turismo, que originou o livro A Invenção do Galeto. A proposta foi abraçada pelo então secretário de Cultura de Caxias do Sul, João Tonus, e por Liliana Henrichs, diretora do DIPAC – Divisão de Proteção ao Patrimônio Histórico e Cultural.
A paixão de Rosana pelo tema vem de casa. Na década de 1950, seu pai, Lautério, abriu a primeira galeteria de Caxias do Sul, no mesmo prédio do hotel da família. A ideia era simples: assar o galeto como se fazia nas colônias, no tradicional estilo menarosto — um conjunto de espetos giratórios com o fogo ao fundo da churrasqueira. Rosana conta que esse método também existe na Itália. Seu Lautério foi além: criou um motor para girar os espetos e inaugurou a galeteria. Na época da Festa da Uva, as filas eram longas. “Chegavam a atender 300 pessoas por dia”, lembra ela. Era um valor único, comida farta e, ainda, meia jarra de vinho por adulto.
O tempero? Era da dona Adélia, mãe da Rosana. Uma mistura certeira de sal, sálvia, alho, pimenta verde, vinagre e vinho tinto. Os pedaços de carne eram intercalados com toucinho e folhas de sálvia nos espetos.
“O diferencial é que a polenta era grelhada numa assadeira colocada abaixo dos espetos, onde escorria a gordura do galeto e do toucinho. Nenhum restaurante tinha uma polenta com esse sabor”, conta Rosana.
A galeteria Pecini fechou na década de 1990, mas deixou um legado — não apenas familiar, mas regional.
Se comer é uma forma de celebrar a cultura de um povo, que tal apreciar a culinária italiana com esse olhar? São 150 anos de lutas, desafios e conquistas de imigrantes que chegaram com poucos bens, mas muitos sonhos — e deixaram para nós um legado rico, saboroso e cheio de história.
Vida longa à farta e deliciosa culinária italiana!