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Uma Belga na colônia: Madame van Langendonck

Uma Belga na colônia: Madame van Langendonck


Aos 60 anos de idade, viúva, escritora publicada, a belga Marie Barbe Antoinette Rutgeers van Langendonck abandona a vida confortável da pequena aristocracia europeia para se aventurar nas matas da região colonial do Rio Grande do Sul. Era o ano de 1857 e sua história está entre as mais curiosas da nossa imigração. Madame van Langendonck – como é conhecida – narrou a experiência em Une Colonie au Brésil, publicado em 1862, em Anvers, Antuérpia, Bélgica. O livro reúne as impressões dos dois anos em que viveu na colônia de Santa Maria da Soledade, território que corresponde às atuais São Vendelino, Harmonia e alguns distritos de Carlos Barbosa, como Santa Clara Baixa.

Santa Maria da Soledade foi criada em 1854 pelo Conde Felice de Montravel, vice-cônsul da França em Porto Alegre. Ele havia recebido as terras do imperador Dom Pedro II com a condição de assentar ali famílias suíças católicas. Ele venderia as terras devolutas aos imigrantes e o governo imperial participaria com subsídios. A companhia Montravel, fundada em 1855, contratou agrimensores para demarcar as terras, entre os quais estava Leon, filho de Madame van Langendonck. O rancho da família ficava entre Harmonia e São Vendelino, área limítrofe entre a colonização alemã e as terras virgens que seriam desbravadas anos depois.

Montravel não conseguiu trazer os suíços e, então, tentou vender os lotes a colonos alemães, holandeses e belgas, mas o projeto gorou. Com o fracasso de Santa Maria da Soledade, as terras são devolvidas ao Governo Imperial e, na sequência, reivindicadas pelo governo provincial a fim de dar continuidade à colonização. A primeira grande leva de italianos chegaria ao Rio Grande do Sul em 1875, instalando-se nas colônias de Conde D’Eu e Dona Isabel (entre outras), que dariam origem, respectivamente, a Garibaldi e Bento Gonçalves, justamente o território vizinho às antigas terras de Montravel. As confusões da política imigratória do Império, com mudanças constantes na legislação, estão muito bem relatadas por Olivio Manfroi em seu indispensável “A Colonização Italiana no RS”. Os suíços prometidos ao Imperador por Montravel só chegariam junto com os italianos, formando em Santa Luiza e Santa Clara – distritos de Carlos Barbosa – uma colônia multiétnica e multilinguística, com migrantes oriundos também da Polônia, Boêmia (atual República Tcheca) e alemães.

O ano de 1875 é também o da morte desta figura peculiar que foi Madame van Langendonck, cuja passagem pela serra do Rio Grande do Sul ocorreu 20 antes do grande marco migratório da região. Depois de dois anos, retornou à Bélgica em 1860, publicando o relato de sua experiência no Brasil. Em 1863, com saudades dos filhos que ficaram por aqui – havia outro além de Leon – retorna ao Rio Grande trazendo outros dois filhos, vindo a falecer em Arroio Grande, município perto de Pelotas. Não há informações sobre o que fez entre a volta ao Brasil e sua morte, nem o que promoveu a mudança da Serra para Pelotas. Provavelmente o trabalho dos filhos agrimensores

O Livro

Uma Colônia no Brasil é o relato sobre a aventura nestas terras. Publicado em português pela Puccamp, em 1990, e pela Editora Mulheres em parceria com a Edunisc, traz como introdução artigo de Augusto Meyer originalmente publicado no Suplemento Literário do Estado de São Paulo, em 1966. A obra é uma curiosidade e uma raridade. Madame van Langendonck é uma proto-feminista: pioneira em seu espírito aventureiro, uma mulher de ideias e autora de literatura de viagens, em um tempo em que estas características eram exceção. Em meio a descrições da vida cotidiana, manifesta opiniões com firmeza e ousadia, critica a civilização europeia, reflete sobre a política imigratória e a sociedade brasileira.

Logo ao chegar, a aristocrata é desaconselhada pelo Conde de Montravel a partir para o mato. Assim como outros viajantes do século 19, tinha a imaginação instigada pela ideia da floresta e não se rende. Ao chegar no matagal, é atingida pela epifania: “Enfim, vi-me em plena floresta virgem! As árvores, as enormes lianas, a vegetação inteira, os pássaros de esplêndida plumagem: tudo me era novo, tudo me maravilhava. Em meio a esta jovem, grande, bela e vigorosa natureza, o reconhecimento e o amor pelo Autor dessas maravilhas transbordavam-me a alma. Jamais sentira Deus como neste instante, e jamais pensamentos melhores me haviam depurado o coração”.

Além do misticismo, o romantismo é forte e suas primeiras impressões da vida selvagem tem laivos rosseaunianos: “Os primeiros dias passados nesse rancho, sob a influência de um clima admirável, em família, no coração de uma floresta imensa, onde mil vozes, mil ruídos desconhecidos tinham um estranho encanto, onde esta nova natureza parece transformar o homem e faz com que nos apiedemos das mesquinharias da civilização europeia, foram tão doces, tão encantadores, que as palavras não saberiam reproduzir essa felicidade.”

Entretanto, não esconde os dissabores da natureza que aparecem em longos trechos sobre o incômodo de mosquitos, aranhas, cobras e bicho-do-pé – a maior desgraça para aqueles pioneiros. Por um tempo, domesticou uma onça – que chamava de tigre – e a colocava para brincar no colo. Queixa-se sobre a dificuldade de arranjar caça para alimentar a fera. No início “um macaco era suficiente para mais de um dia”, mas o apetite crescia conforme a criatura aumentava de tamanho.

O fascínio pela natureza, festejada como “magnificência de Deus”, combinava-se com uma severa crítica aos imigrantes, que, em sua opinião, representavam “amostras de todas as infâmias do velho mundo, de que nos sentíamos felizes de estar longe”. Tinha péssima opinião sobre a colonização de Montravel, cujos agentes, afirma, enviaram ao Brasil não a escória da Europa, mas os piores dessa escória. Sobre os alemães, comenta: “Entre os colonos vindos da Alemanha, estavam ladrões, incendiários, assassinos. Quase todos eram indivíduos que haviam passado de quatro a doze anos na cadeia e com os quais tínhamos medo de nos encontrar nas florestas”. Acerca de uma família patrícia, diz: “Ela [a Sociedade Montravel] nos trouxe alguns belgas, recrutados nas prisões e depósitos de mendigos”. Julgava a família belga a encarnação do vício, com um marido violento, uma mulher depravada e crianças que já “estavam com os germes de todos os vícios da humanidade”.

Madame van Langendonck, ao mesmo tempo em que critica a inépcia dos agentes da colonização, faz elucubrações sobre que forma de civilização poderia resultar do melting pot que se cozinhava no Brasil, em que a imigração era vista como alternativa econômica para o regime escravocrata que colapsava. Para Langendonck, era absolutamente evidente que o Brasil, e especialmente o Sul, se dividisse em pequenas repúblicas: não lhe parecia possível que tantos grupos étnicos, com línguas e religiões diferentes, pudessem viver em um mesmo Estado. “O sul”, escreve Langendonck, “demasiado afastado do centro do governo, se comporá, cedo ou tarde, de pequenos estados que se declararão independentes. Já pouco faltou para que a província de São Pedro fosse bem-sucedida em sua tentativa de separação do resto do império”.

Abolicionista e Racista

Defende a abolição, rejeitando com asco a instituição escravagista, mas seu racismo em relação aos negros é explícito em vários trechos de Uma Colônia no Brasil. Repudia o convívio dos brancos com os negros, que, para ela, eram devassos: “Indignei-me contra a escravidão. Enderecei em prosa e em verso aos proprietários de escravos epístolas enternecedoras. Minha simpatia pelo povo negro era profunda, eu me compadecia deste, censurava os brancos, com confiança. E certamente não foi sem luta que renunciei a minhas convicções. Mas depois que eu vi de perto os negros, dos dois sexos em diferentes condições, fiquei firmemente persuadida de que sua moralização, se não é impossível, exigirá vários séculos de esforços”. Ou seja: Langendonck é abolicionista de longe – intelectualmente; de perto, é racista.

Em relação aos índios demonstra muita simpatia. Um dos momentos mais reveladores sobre aquela vida em meio a floresta diz respeito à um casal de índios destribalizados. Era a família de Maximiliano e Máxima Nunez. Ele era o violeiro das festanças daqueles solitários exploradores e ela, “a providência dos colonos” – nas palavras admiradas de Madame, que elenca uma série de milagres realizados por Máxima. A índia conhecia todos os segredos da flora medicinal da floresta, tinha remédios para todos os sofrimentos físicos, realizando curas espantosas. Apesar do reconhecimento, tais feitos não dobram o ceticismo da europeia: “Estou persuadida de que a imaginação era em grande parte responsável por várias curas da Senhora Maximiliano, a quem os colonos emprestavam um poder oculto”.

Além das doenças, aqueles desbravadores eram amedrontados por tribos de índios em estado selvagem, que ela chama de “peles-vermelhas”, e por negros fugitivos refugiados nas encostas rochosas. Narra o medo e ansiedade que sentia quando os filhos agrimensores se ausentavam durante semanas para trabalhar em regiões distantes. Em uma noite, as mulheres da família Nunez se abrigam em sua casa, rondada por homens que disparavam tiros de fuzil seguidos por horríveis clamores. Sozinhas, as mulheres estavam munidas de armas de fogo e facões, que manejavam com perfeição, segundo a autora. Era necessário, pois a pilhagem seguida de violência e morte fazia parte das histórias que fomentavam a imaginação dos colonos.

Poetisa publicada e escritora de livros de viagens, cronista da política e dos costumes em uma época em que tudo isso era exceção para uma mulher, Madame van Langendonck é uma raridade. Uma intelectual no mato – com a enxada em punho e uma onça como bichinho de estimação. Durante o dia trabalhava na roça, espantava as cobras e, à noite, fazia suas leituras. Quando saía da colônia era recebida como uma senhora da alta sociedade nos salões da capital da Província, Porto Alegre, ou na capital do Império. Antes de deixar o Brasil visitou Dom Pedro II, ao qual relatou suas impressões sobre a região colonial. O Museu Imperial de Petrópolis possui em seu acervo as cartas enviadas por Madame ao Imperador e à Dona Teresa Cristina.

Essa mulher, não apenas letrada, mas culta, é lembrada porque escreveu um livro. A história entre seu retorno até sua morte em 1875, e de seus descendentes que ficaram no Brasil, está para ser descoberta, pois esta história Madame não escreveu.