
Li um ótimo texto de Taiguara Fernandes sobre caridade na visão do Papa Emérito Bento XVI, inclusive enaltecendo sua Encíclica “Caritas in Veritate”, e a correlação que Taiguara faz entre caridade e justiça.
Segundo o seu autor, na visão de Bento XVI, cada sociedade desenvolve seu sistema de justiça. E a caridade supera a justiça, porque, entre outras razões por ele apontadas, amar é dar, é oferecer ao outro o que é “meu”; quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles; a justiça não só não é alheia à caridade, como não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é inseparável da caridade. É dizer: esta lhe é intrínseca.
A justiça, conforme afirma o texto, é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, é medida mínima’ dela, parte integrante daquele ‘amor por acções e em verdade’ que nos exorta o apóstolo João.
O fato de eu não concordar integralmente com o que o autor diz, não retira a beleza do texto, nem meu reconhecimento sobre a necessidade tão urgente quanto necessária de construirmos pontes e vias de aproximação entre direito e justiça.
Eu não desconheço a importância do Cristianismo para o desenvolvimento do conceito de “pessoa”, do seu mandamento para amar o próximo como a ti mesmo (bem semelhante ao que depois foi acolhido com outro nome nos imperativos categórico e prático de Immanuel Kant, já ao final da Modernidade, dando as bases do conceito inicial de dignidade humana), como também não ignoro o contributo da Doutrina Social da Igreja para a construção de um modelo crítico ao Estado Liberal e aos Estados Socialistas e Comunistas: o Estado Social de Direito.
Mas quero explicar porque não concordo com Taiguara e deduzir minhas objeções às duas ideias.
Primeiro, não concordo que cada sociedade desenvolve seu sistema de justiça. Aliás, a realidade nos mostra que algumas sociedades atuais e de outrora construíram verdadeiros “sistemas de injustiça”, baseados em uma legalidade formal e vazia de conteúdo ético-moral que, em dado momento histórico, quase conduziu a humanidade inteira ao extermínio.
Portanto, não tenham dúvidas, senhores leitores, de que não é qualquer sistema legal ou de leis que pode ser arvorar na condição de um “sistema de justiça”; tampouco, duvidem, parafraseando Albert Camus, que o bacilo da peste desapareceu completamente. Ele apenas anda um pouco adormecido nos armários, nas alcovas, nos livros, em meio à papelada. Os ratos estão sempre ávidos por sair dos bueiros. Albert Camus ainda nos lembra que o pior da peste não é que ela mate corpos, mas que ela desnude as almas, e esse “espetáculo” costuma ser horroroso.
Também não concordo que a caridade supera a justiça. inicialmente, porque a caridade, na tradição, implicou a dar ao outro o que é seu; aquilo que não lhe faz falta; a sobra. A esmola (talvez até uma dorzinha na consciência) lhe é correlata, e não o amor. Falo da mesma esmola que, em muitos momentos históricos, foi oficializada pelo próprio Estado (uma ficção jurídica, porque o Estado verdadeiramente somos nós).
Igualmente, não perfilo o entendimento de que a caridade, nessa perspectiva, supere a justiça, nem constitui forma de sua expressão. Embora ela possa dar um certo alívio à consciência de quem a faz, ela não dignifica a condição humana de quem a recebe, porque, ou cria dependência (e domínio), ou o coloca na condição de inferioridade, de uma menos valia, operando na lógica de seres que têm mérito e abundância, e de seres que não o têm, como não têm nenhum talento ou condição de prover a sua própria subsistência e conformar o seu destino: dependem da caridade e da bondade alheia para subsistir.
Por essas minhas singelas razões, a meu sentir, a dignidade da pessoa humana (lembrando que essa ideia se formou no bojo do próprio Cristianismo) exige o abandono da ideia de “caridade”, de dar o que é meu, quando posso e quero (às vezes eu não amo, nem posso, nem quero), de doar as sobras, o que não faz falta, para substitui-la pela ideia e conteúdo de “solidariedade”, com projeção em todos os estratos da vida social, desde a família até a comunidade internacional.
A solidariedade, sublinhe-se, não supera e nem pode superar a justiça. Ela é, ao revés, desde Aristóteles, uma de suas formas de expressão (embora não a única), inerente à dimensão naturalmente social do ser humano, que não nasceu só para si próprio, mas, também, para os outros, sem os quais ele não encontra reconhecimento nem exerce suas potencialidades humanas. Sem ser num ambiente social, o homem não vive em plenitude de sua existência, embora possa, como portador de um genoma humano, ter uma vida física.
A solidariedade, ademais, enquanto uma das formas de a justiça se expressar, afasta-se não só da caridade ou da esmola, para se assumir como apoio, auxílio. Ela, portanto, não mostra que ama por dar, nem se desfazendo de excessos ou sobras; ela constitui suporte, um dever de cuidado e uma responsabilidade (inerente à liberade) pelo seu destino e pelo destino de seu semelhante.
Quando você dá o que é seu, o que lhe sobra, ainda que por amor, vá lá, você não apoia o seu semelhante, o seu irmão em Cristo, no postulado de Santo Agostinho. Você se substitui ao dever de ele próprio prover sua própria subsistência e dos seus. Tira dele a responsabilidade que lhe é própria, o que é incompatível com a ideia de liberdade e do direito que tem de ser o único a conformar o seu futuro.
Solidariedade é ensinar a pescar; é auxiliar a todos aqueles que, na tradição Cristã, foram criados à imagem e à semelhança de Deus, e são, portanto, irmãos pela descendência de um tronco comum, a manterem ou conservarem a sua humanidade e promoverem a sua dignidade.
E não se trata de uma faculdade ou de um dever moral ou de sangue do bom Cristão. É um dever jurídico (por isso, uma forma de expressão da justiça) justamente porque a regra de ouro da convivência humana é a interdependência uns dos outros.
Se eu necessito do reconhecimento do outro como ser humano materialmente igual a mim, na humanidade que compartilhamos ou temos em comum; se eu preciso dos outros seres humanos (pais, mães, filhos, irmãos, amigos, vizinhos e todos os demais estratos da vida social), a solidariedade é, ainda, uma dimensão da própria dignidade humana, decorrente da dimensão necessariamente social de todo ser humano.
Quando falamos da condição humana, não podemos ignorar que o homem é tanto individual como social. Se ele é necessariamente social, quando falamos em solidariedade (uma das formas de expressão da justiça), ainda estamos falando de algo constitutivo da própria dignidade do homem, e não de caridade, com a vantagem de abstrair o tema do âmbito religioso, em homenagem ao respeito ao princípio constitucional de liberdade religiosa de que tanto falam os arautos da liberdade: quem perfila outra confissão de fé ou nenhuma, e mesmo aqueles desprovidos de consciência de fé, de liberdade e da própria vida, por afetação temporária ou permanente de suas faculdades mentais (não sabem o que é caridade, nem fé nem existência), mesmo estes fazem jus ao apoio, ao auxílio, ao direito de que sejam ajudados a manterem sua vida e conservarem sua dignidade.
Por isso, a solidariedade é um dever; ela é vinculativa tanto dos Poderes Públicos, como vinculativa nas relações privadas, embora se possa pensar em graus diferentes de vinculação. Todos existem para auxiliar o seu semelhante a conservar a sua humanidade e dignidade aqui e agora, e isso não é favor. É amor, reconhecimento de que estamos todos na mesma aventura humana e que a verdadeira igualdade, em termos de humanidade, é a substancial. Esse é o amor de Philia pensado por Aristóteles (in Ética a Nicômaco), como um amor de amizade, e não de alguém que atua apenas para a salvação em que nós, Cristãos, acreditamos vivamente.