O STJ (Superior Tribunal de Justiça) reforçou o entendimento de que as guardas municipais não podem exercer atribuições das polícias civis e militares e restringiu o poder da força para fazer abordagens e revistas.
A tese foi formada pela Sexta Turma da corte na última quinta-feira (18) em um julgamento de recurso de um homem condenado por tráfico de drogas em São Paulo após ser revistado por guardas municipais. Os ministros consideraram ilícitas as provas colhidas e anularam a condenação dele.
Embora o caso específico não tenha repercussão geral, o relator da ação, ministro Rogerio Schietti Cruz, destacou a importância de se definir um entendimento da corte sobre o tema, tendo em vista “o quadro atual de expansão e militarização dessas corporações”. A decisão foi classificada como “desrespeitosa” por um representante da categoria.
Qual deve ser o papel das guardas municipais?
O colegiado entendeu que atuação da guarda municipal deve se limitar à proteção de bens, serviços e instalações do município —o que já é estabelecido pela Constituição — e que só pode realizar a abordagem de pessoas e revista quando a ação se mostrar diretamente relacionada à finalidade da corporação.
Qual foi o argumento dos ministros?
Em seu voto, Schietti Cruz destacou que a Polícia Militar e a Polícia Civil estão sujeitas a fiscalização por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário, uma contrapartida à possibilidade de “exercerem a força pública e o monopólio estatal da violência”. Já as guardas municipais respondem apenas, administrativamente, ao comando dos prefeitos locais e de suas corregedorias internas.
Na avaliação de Schietti Cruz, seria potencialmente “caótico” autorizar que todos os municípios brasileiros tenham sua própria polícia, sem estarem sujeitas a controles externos.
“Não é preciso ser dotado de grande criatividade para imaginar – em um país com suas conhecidas mazelas estruturais e culturais – o potencial caótico de se autorizar que cada um dos 5570 municípios brasileiros tenha sua própria polícia, subordinada apenas ao comando do prefeito local e insubmissa a qualquer controle externo. Ora, se, mesmo no modelo de policiamento sujeito a controle externo do Ministério Público e concentrado em apenas 26 estados e um Distrito Federal, já se encontram dificuldades de contenção e responsabilização por eventuais abusos na atividade policial, é fácil identificar o exponencial aumento de riscos e obstáculos à fiscalização caso se permita a organização de polícias locais nos 5.570 municípios brasileiros.”
Como foi o caso que levou à decisão do STJ?
Segundo consta no processo, os guardas municipais estavam em patrulhamento quando se depararam com o homem sentado em uma calçada. Ao avistar a viatura, ele se levantou e colocou uma sacola plástica na cintura. Por desconfiar da conduta, os guardas decidiram abordá-lo e, após revista pessoal, encontraram um recipiente com drogas, o que o levou a prisão em flagrante. O cas foi registrado em Itaquaquecetuba (SP).
“Ainda que eventualmente se considerasse provável que a sacola ocultada pelo réu contivesse objetos ilícitos, não estavam os guardas municipais autorizados, naquela situação, a avaliar a presença da fundada suspeita e efetuar a busca pessoal no acusado”, afirmou Schietti Cruz.
Para ele, a conduta correta dos guardas neste caso seria acionar a polícia para que fosse realizada a abordagem e a revista do suspeito. “O que, por não haver sido feito, macula a validade da diligência.”
Uso de fuzis.
Em seu voto o relator também destacou que o propósito das guardas municipais vem sendo desvirtuado e que algumas estão sendo equipadas “com fuzis, equipamentos de uso bélico, de alto poder letal e de uso exclusivo das Forças Armadas”.
Em abril deste ano, a GCM (Guarda Civil Municipal de São Paulo), por exemplo, começou a usar fuzis e carabinas. Na ocasião, a prefeitura informou ao jornal Folha de S. Paulo que 240 agentes foram treinados para o uso de armas longas e que havia previsão de que outros 600 profissionais fossem habilitados até o final deste ano. Especialistas em segurança pública ouvidos pelo jornal foram contra a compra.
Como a guarda deve agir?
O ministro explicou que a guarda municipal não está impedida de agir quando tem como objetivo proteger o patrimônio do município, realizando, excepcionalmente, busca pessoal quando estiver relacionada a essa finalidade.
“Vale dizer, só é possível que as guardas municipais realizem excepcionalmente busca pessoal se houver, além de justa causa para a medida (fundada suspeita de posse de corpo de delito), relação clara, direta e imediata com a necessidade de proteger a integridade dos bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, o que não se confunde com permissão para realizarem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil para combate da criminalidade urbana ordinária”, disse o ministro.
A guarda municipal também pode fazer prisão em flagrante, mas, segundo o ministro, isso se aplica apenas ao caso de flagrante visível de plano, como, por exemplo, um roubo na rua. No caso julgado, a situação de flagrante só foi descoberta após a realização da revista.
O que diz a categoria?
Oséias Francisco da Silva, presidente da CONGM (Conferência Nacional das Guardas Municipais), classificou como “desrespeitoso” e equivocado o trecho do voto em que o ministro fala sobre a ausência de controle das corporações e diz que o Ministério da Justiça monitora a regularização das guardas no Brasil, além de estabelecer a matriz curricular de formação.
“Ele coloca no voto como se a guarda fosse um bando sem controle nenhum, como risco para sociedade e isso foi um grande desrespeito”, disse ao UOL. “Trouxe um efeito muito danoso para a imagem da guarda.”
Silva diz que a maioria das cidades sofre com a insuficiência de efetivo da polícia militar e que os municípios tiveram que se organizar a partir disso.
Ele ressalta que as guardas atendem um número crescente de ocorrências envolvendo violência doméstica e teme que o entendimento também impacte na prisão de suspeitos deste tipo de crime.
“Ele [Schietti] deixa claro no voto dele que se a atuação da guarda municipal não tiver relação com bens patrimônios municipais a guarda não pode atuar, só em questão excepcional, como qualquer um do povo. Isso gerou muita discussão.”
O presidente da CONGM diz não ter dúvidas que é enfrentar eventuais casos de excesso cometidos pela força, mas que não se pode julgar a corporação como um todo.
Fonte: Uol