Opinião

Sobre a Banalidade do Mal

Foto: Arquivo Leouve
Foto: Arquivo Leouve

Fiquei pensando na nova forma de escravidão e de dominação do Século XXI: o narcotráfico, modalidade delitiva para com a qual nossa legislação e principalmente nossos Tribunais são tão condescendentes. Aliás, o STF, na via interpretativa, esvaziou o tratamento rigoroso que a Lei 8.072/90 (lei dos crimes hediondos) dava ao tráfico de entorpecentes, especialmente por sua vinculação a outros crimes de extrema gravidade como o homicídio e o latrocínio.

Vejam bem, não estou aqui propondo a supressão de nenhuma garantia processual, com lastro em nossa Constituição, nem tornado todo preso culpado. Eu estou falando do crime organizado, no bojo de facções criminosa que, sob comando de líderes, não raro presos, praticam um sem número de homicídios e latrocínios, por meio de seus soldados, matando, todos os dias, rivais (inimigos com os quais disputam território e espaço para venda de drogas), desafetos contraídos no âmbito carcerário; matam fornecedores e devedores e, ainda, matam, sem mais, todos aqueles que forem necessários para asseguram a impunidade e a continuidade do negócio. É a própria expressão da banalidade do mal, matando, por matar, para atingir uma outra finalidade, inocentes.

Não fui eu a primeira a pensar nessa banalidade que vemos acontecer dentro do Estado de Direito, sob a benevolência de nossos Poderes de Estado. A Filósofa Judia Alemã Hannah Arendt (1906-1975), uma das mais importantes filósofas contemporâneas, tendo especialmente se voltado ao entendimento do Totalitarismo, utilizando aspectos da Filosofia Política, falou bem antes de mim sobre essa banalidade. Aliás, os créditos são todos dela.

Lembro que ela falou com experiência própria: Hannah Arendt chegou a ser presa, pelo Regime Nazi, mas fugiu de um campo de concentração e foi para os Estados Unidos da América, onde passou a viver como refugiada, como apátrida (sem os direitos políticos e sem ter como voltar para a sua Pátria, ao menos não enquanto a Segunda Guerra Mundial não acabasse, pena de ser presa e exterminada).

Nos Estados Unidos, ela acabou se estabelecendo como Professora de Filosofia e, a partir dali, Hannah Arendt intensificou sua investigação para a compreensão do Totalitarismo (que ela não enxergava só na Alemanha, mas, também, na União Soviética, na Itália, na Hungria etc).

De plano, Hannah Arendt se debruça sobre a Teoria de Montesquieu – Teórico Moderno da Separação dos Poderes, da Liberdade, da República e da Democracia, que ela muito admirava – e constatou que ela explicava muito bem o Antigo Regime (Absolutista), baseado no “medo” dos súditos em relação ao Monarca. Porém, aquela Teoria não explicava, de jeito nenhum, o Totalitarismo, que é fundado no “terror”, tal qual a coisa é no narcotráfico.

E o que seria esse terror no caso do Totalitarismo? Seria aquilo que os líderes totalitários se utilizam para deixarem a população com medo não deles mesmos, ou seja, não com medo dos Líderes, dos Governantes. Se, antes, no Antigo Regime, os súditos tinham que temer ao Rei, no Totalitarismo, as pessoas não tinham que temer Hitler, Mussolini, Lenin, Stalin etc. Eles tinham que ter medo do “inimigo” – aquele que era considerado “o inimigo público” -.

E o Líder Totalitário se utilizava dessa ideologia do terror (da imagem construída de um inimigo público) para unir a população contra ele (o inimigo público), e com isso produzir um sentimento nacionalista, de união, de luta em conjunto. Com essa estratégia do terror, os Líderes Totalitários conseguiam uma grande mobilização das massas. Hitler, Mussolini, Stalin enfim, infligindo esse terror no povo, conseguiam unir a população ao Regime, ao Governo, todo mundo junto contra o “inimigo comum”, todos se apoiando contra o inimigo público, no caso da Alemanha, os judeus; no caso da Itália Fascista eram, em geral, os estrangeiros, os não europeus, os ciganos, os homossexuais etc.; e , na União Soviética, a burguesia e todos aqueles que se opunham ao regime comunista.

Para além a ideologia do terror do inimigo público, contra o qual a Nação tinha que lutar, os regimes totalitários ainda se valeram do culto à personalidade do líder, que foi muito forte e muito comum. As pessoas cultuavam as figuras de Hitler, de Stalin, de Mussolini, como salvadores da pátria. Havia ainda uma propaganda da qual os governos se utilizavam muito fortemente para incutir a ideologia do inimigo público que precisa ser combatido. Hannah Arendt vai identificar todos esses elementos e soma-los dentro os regimes totalitários, diferenciando esses regimes de qualquer outro evento político que já tivesse acontecido antes.

Dois conceitos vão especialmente ser tratados em suas obras: “o mal radical” e o “mal banal” (ou a banalidade do mal, termo que ela vai tratar em sua obra Eichamann em Jerusalém). O que seria “o mal radical”? Seria, por exemplo, aquele mal provocado por pessoas antissemitas que acreditavam naquilo que elas estavam fazendo; eram os antissemitas convictos, que queriam a aniquilação dos Judeus. Hitler, exemplificativamente, defendeu aquilo que acreditava, crendo que o Governo Nazista estava certo, que estava correto; que ele tinha que acabar com aquele inimigo público, para fazer a Nação Alemã prosperar.

“O mal banal ou a banalidade do mal já se expressa, por exemplo, na pessoa de Eichemann. Adolf Eicheman foi um oficial de baixa patente no exército alemão (das forças da SS Nazista) que, finda Guerra, conseguiu fugir da Alemanha e escapar do Julgamento de Nuremberg. Ele fugiu para a Argentina, onde, posteriormente, em 1961, foi localizado pelo Serviço Secreto Israelense e, uma vez capturado, foi levado para Israel, para ser julgado pelo Tribunal de Jerusalém, onde ele foi condenado à morte e enforcado.

Eichmann, a bem da verdade, nunca matou um único judeu. Ele era apenas o encarregado, entre os anos de 1942-1945, da logística de enviar judeus para os campos de concentração; ou seja, ele organizava quem entraria em cada trem que partia para cada campo de extermínio. Em uma palavra: era parte da engrenagem, da organização. Vaidoso e interessado na ascensão social, em sua defesa, Eichmann dizia que apenas havia feito o que era correto: cumprir a lei. Afinal, ele apenas cumprira ordens legais de seu tempo. Nada mais que isso. Ele não tinha nenhuma convicção antissemita. Somente queria se manter integrado na SS Nazista e cumprir o seu papel, a sua função.

Na época, Hannah Arendt trabalhava como correspondente da Revista The New Yorker e foi cobrir esse julgamento, para dele extrair um material jornalístico, sendo que aquela matéria, contendo suas percepções, deu origem ao livro “Eichmann em Jerusalém”. Isso, segundo observou Hannah Arendt, porque Eichmann não era um antissemita convicto; teve amigos judeus, namorou uma judia. Ele simplesmente era um cidadão comum que viu, no Exército Alemão, uma oportunidade de prosperar, de crescer econômica e financeiramente.

Segundo Eichmann, era um trabalho normal, exercido por uma pessoa normal: ele estava apenas recebendo ordens e cumprindo aquelas ordens, não sendo nem a favor nem contra o que estava sendo feito. No momento, era algo legal, de modo que ele não via nenhum problema moral em se comprometer com o Regime Nazista.

A maldade de Eichmann, na percepção de Hannah Arendt, era a própria banalidade do mal: é alguém fazer o mal por um motivo vulgar ou trivial. Eichmann não acreditava no que fez; simplesmente fez o que fez para atingir numa outra finalidade. Daí sem interpretado por Hannah Arendt como personificação de um mal desprezível.

Então, eu pergunto: o mal perpetrado pelas facções criminosas, voltadas ao narcotráfico, como estamos vendo acontecer todos os dias, com “traficocídios” reiterados de inimigos e de inocentes (que apenas estavam no lugar errado na hora errada), é ou não é a banalização do mal (pensada por Hannah Arendt) em pleno Estado de Direito, contando com a chancela e a banalização do mal pelos próprios agentes da vontade estatal?

Vejo o fenômeno se repetir. Urge de nossos governantes um repensar a condescendência para com essa modalidade delitiva. Outro dia, lembro que o Judiciário mandou devolver a droga para um traficante e isso simplesmente é abominável.