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A morte de Marielle e a tragédia carioca

A morte de Marielle e a tragédia carioca

O cruel assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista dois dias antes da intervenção no Rio de Janeiro completar um mês assusta o mundo inteiro. E assusta porque mostra a imensa crise de autoridade que vive o Rio, dividido historicamente entre governos envolvidos com a corrupção e o crime organizado que comanda as favelas na total ausência do Estado.

A morte de Marielle se reveste de uma multitude de significados, a morte da socióloga criada na favela, da mulher negra intimamente ligada às questões das minorias, de uma vereadora eleita com 46 mil votos e, portanto, a morte de uma representante da organização do Estado.

E é neste ponto que este crime adquire a relevância de uma afronta direta ao Estado no momento em que, mal ou bem, há uma tentativa de reação em curso, ainda que se possa questionar métodos e estratégias. A morte da vereadora é também um confronto aberto contra o Estado organizado que deveria protegê-la. E assusta, porque é uma ameaça e uma demonstração de que não há limites.

Mas, principalmente, assusta porque escancara a existência promíscua entre parte das forças de segurança e o crime organizado em áreas dominadas pelo tráfico e pelas milícias, numa realidade que ameaça o cotidiano de uma população cada vez mais refém do crime e entregue à própria sorte.

E essa dificuldade em combater a criminalidade é ampliada porque, muitas vezes, o crime está dentro dos quartéis. E eu acredito, e já disse isso aqui, que a intervenção militar na segurança pública do Rio só poderá funcionar se além de combater o crime nas favelas e nas ruas também depurar e banir os criminosos de dentro das forças legalistas.

E pra isso, é preciso tempo, dinheiro, investigação, rapidez do Judiciário e uma reconstrução do sistema penitenciário, uma cadeia de fatores que as forças armadas não podem responder sozinhas.

A morte de Marielle e de tantas outras pessoas sem nome e sem rosto, como a médica morta em uma tentativa de assalto, como o empresário que perdeu a vida diante do filho de cinco anos, como o motorista que acompanhava a vereadora ou como as centenas de policiais que perdem a vida ao lutar contra o crime, não podem passar em branco ou serem simplesmente naturalizadas.

E também não podemos culpar a própria vítima ou mesmo culpar a operação militar. A vereadora não inventou os criminosos que denunciava, nem os da favela ligados ao tráfico, nem os de farda ligados às milícias. Marielle e todos os outros são vítimas da ausência histórica do Estado, que ajudou a formar esse tempero que mistura o crime, a política, os traficantes, a banda podre da polícia e as milícias num caldo engrossado a cada dia pela intolerância e o preconceito que impedem o combate ao crime e mantêm tudo como está.

É preciso condenar a morte de Marielle para além de suas posições políticas, e qualquer pessoa decente deve lamentar essa morte profundamente como uma resposta ao crime e como um fim a essa receita que impede a superação da tragédia carioca.

Caso contrário, outros anônimos continuarão a ser mortos todos os dias, como vem sendo hoje, sem uma reação efetiva do poder público e, lamento dizer, sob o silêncio cúmplice de extremistas de todas as cores.