Opinião

Justiça Líquida

Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)
Comentário de Sílvia Regina. (Foto: Reprodução)

Li em um canal de “Ciências Criminais” uma jurisprudência do STJ que dizia assim: “Eventuais máculas na fase extrajudicial não têm o condão de contaminar a ação penal”. Boquiaberta, eu disse a mim mesma: “Oi?”

Pensei com os meus botões: “É pegadinha. Alguém entendeu isso mesmo? Se sim, pelo amor de Deus, avisem para o estagiário do Ministro que existe uma Constituição Federal e que nela estão consagradas as garantias do devido processo legal, no que se inclui, por exemplo, a vedação da utilização da prova ilícita. Também, que a Lei 13.964/19, em vigor desde 06 de janeiro de 2020, introduziu uma especial exigência no artigo 158-A e seguintes do Código de Processo Penal, com a potencialidade de gerar nulidade absoluta em matéria de cadeia de custódia”, e mais não se precisa dizer para refutar tamanho absurdo pronunciado por uma Turma Criminal de Tribunal Superior.

Tenho tentado, de verdade, me adaptar a estes duros tempos em que ninguém mais lê quase nada do que você escreve. Aquele modelo em que se enchia petições com Doutrina e Jurisprudência (transcritas, literalmente, de Revistas que você assinava, pois não existia internet), você, jurista, lembra dele? Lembra, também, quando os Advogados, públicos e privados precisavam narrar os fatos e indicar que norma jurídica que deveria incidir sobre eles, e que tal norma deveria constituir também fundamento jurídico da decisão e nela ser expresso e justificado?

Não é mais assim. Confesso que nunca vi tamanha pobreza jurídica como hoje em dia, mas mudou, oK? Favor não entulhar petições com Doutrina e Jurisprudência, porque nada será lido. Aliás, até estas viraram, salvo casos pontuais, uma mesmice de corta e cola, e ninguém mais tem paciência para isso. Contamos com a sua compreensão!

Você está sabendo, então, que, agora, o menos é mais? É, porque ninguém dá conta de ler tanta coisa. Não há estrutura de Poder Judiciário que possa dar vazão ao número existente de processos, sobre os quais, os advogados perderam o controle quanto ao tempo, quanto à qualidade, quanto à orientação de decisão (tudo pode mudar) e quanto à efetividade da jurisdição. Não nade contra o sistema, por favor. Com rara exceção, você conseguirá falar com o Juiz, o Desembargador ou com o Ministro. É dever deles receberem partes e advogados, mas isso já está demodê. Se você conseguir falar com o Assessor estará de bom tamanho. Sinta-se abençoado. Não reclame. Não seja brigão nem tente se valer de suas prerrogativas. Bobagem.

Você já examinou a pauta dos Tribunais Inferiores e Superiores e viu que os julgamentos são a rodo? É. Mas, tranquilo: as decisões são também, com fundamentações padrões, clichês, até quando se trata de uma verdadeira heresia jurídica como a ventilada no primeiro parágrafo dessa coluna.

Sei que é difícil deduzir um problema complexo em poucas linhas. Mas, olhe, faz tempo que nesse âmbito impera a lógica da “petição 10; sentença 10”, e nisso não vai nenhuma garantia de excelência (este é outro adjetivo ultrapassado). É a exceção. Cada vez mais rara.

Não sei se tenho ainda boas notícias: nem bem estou adaptada às novas exigências do que hoje, em 2022, se entende por um processo de “qualidade”, e já ouvi falar em uma tal de “inteligência artificial”. “Precisava mais artificial e superficial do que já é?” (só pensei; não verbalizei). Mas diz que tudo se encaminha para isso. Alguém tem esperança de que a novel proposta será melhor, mais célere e menos cara? Acho que vou ficar sentada à beira do caminho, porque meu espírito jurídico não se habituará aos tempos de “justiça líquida”, para usar uma expressão de Zygmunt Bauman. É que eu gosto de uma petição bem-feita; de uma defesa bem elaborada e uma decisão bem fundamentada! Se isso é defeito…bem, acho que não vou mudar quanto à minha concepção de “quality” não só de petição, mas, especialmente, de jurisdição.