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Inquérito que investiga supostas irregularidades em contratações terceirizadas completa dois anos sem respostas

Audiência Bento Gonçalves audiências pública
Arquivo Leouve

Como uma mesma pessoa pode conquistar os principais contratos terceirizados da prefeitura de Bento Gonçalves sem licitação? Por que a prefeitura de Bento Gonçalves desclassificou a empresa que ofereceu a melhor proposta para a prestação de serviços gerais terceirizados? Por que manteve os contratos mesmo com uma série de denúncias que se acumulam desde o ano de 2020? E, por fim, existem ligações entre empresas e pessoas que prestam serviço para a prefeitura de Bento Gonçalves com um esquema de corrupção já denunciado à Justiça? Essas são algumas das questões que deveriam ter sido respondidas em um inquérito civil do Ministério Público (MP) de Bento Gonçalves, aberto para investigar supostas irregularidades nas contratações milionárias feitas sem licitação pela prefeitura de Bento em 2020, mas que, dois anos depois, ainda não chegou a qualquer conclusão.

A expectativa é que, com o fim do recesso do MP neste mês, o inquérito civil instaurado em fevereiro de 2021 para apurar as denúncias de irregularidades envolvendo os dois maiores contratos de terceirização de mão de obra celebrados pela prefeitura de Bento Gonçalves, com as empresas MedSaúde Ltda e APL Apoio Logístico Ltda, celebrados sem licitação pela prefeitura em 2020, seja retomado. Atualmente, ele corre em segredo de justiça, e a última movimentação ocorreu em novembro do ano passado. O promotor Alécio Nogueira afirmou que, por estar em segredo de justiça, não é possível fornecer informações do andamento das investigações. “O segredo é em benefício da operação, pois pode haver troca de informações de outras instâncias em que também há segredo”, afirmou Nogueira em novembro passado.

A troca de informações informada pelo promotor bento-gonçalvense possivelmente se refere a uma esperada participação do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), devido a uma suposta ligação de alguns envolvidos com a Operação Camilo, que resultou na prisão de políticos e pessoas ligadas a empresas prestadoras de serviço para a saúde no município de Rio Pardo, deflagrada em maio de 2020 para investigar um esquema que envolve corrupção ativa e passiva, organização criminosa, lavagem de dinheiro, fraude a licitação e estelionato, cujo processo também corre em segredo de Justiça desde que a Polícia Federal (PF) indiciou 33 pessoas em maio do ano passado.

Essa ligação, constatada em abril de 2021, revelou o suposto envolvimento de dirigentes e empresas que prestam serviço para a prefeitura em paralelo às investigações. Esses nomes aparecem em uma sentença do desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que indeferiu um pedido de liberdade provisória de um dos principais suspeitos daquela operação, ora como operadores do esquema, ora como envolvidos em outras situações que indicam supostas fraudes no sistema de saúde em cidades do estado.

O que liga o esquema a Bento Gonçalves

O elo entre as empresas que prestam serviços em Bento Gonçalves e os indiciados na operação, que usariam laranjas para garantir a aplicação dos golpes, é o empresário Fernando De La Rue, sócio da APL e, à época, representante legal da MedSaúde no contrato celebrado com a prefeitura de Bento – hoje,ele aparece como sócio-administrador também da empresa de saúde. Conforme a sentença de Flores Lenz, o nome do empresário teria sido citado pelo menos duas vezes nas ligações telefônicas interceptadas pela Polícia Federal (PF) em referências ao pagamento de propina a agentes públicos no âmbito da Operação Camilo.

A sentença do TRF4 também apontou suspeitas de que a MedSaúde faça parte do esquema, com suposta atuação em outras cidades. Em uma das conversas, a empresa é apontada por ter adulterado horas trabalhadas para superfaturar cobranças que resultaram em um prejuízo de quase R$ 500 mil à prefeitura de Santa Cruz do Sul, o que teria sido confirmado por uma sindicância interna.

As referências aparecem na investigação sobre o chamado “núcleo público” do esquema, que resultou na prisão do então prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros, reveladas em mensagens de áudio apreendidas em celulares de dois dos investigados, conforme consta no processo. Em um dos trechos, um dos interlocutores, representantes das empresas envolvidas no esquema, afirma que um certo Fernando – a quem a justiça identifica como De La Rue – indica o valor a ser pago como propina para agentes públicos. Uma das hipóteses da investigação é que ele atuava como laranja de Carlos Alberto Serba Varreira, secretário-geral do partido Solidariedade no estado, preso na Operação Camilo.

Inquérito em Bento Gonçalves completa dois anos

O inquérito civil, instaurado na Justiça Cível de Bento Gonçalves em fevereiro de 2021 sob o número 00723.000.221/2021 depois que uma denúncia revelou inconsistências e coincidências envolvendo as contratações, investiga as condições em que foram celebrados os contratos milionários da prefeitura de Bento em 2020, desde os processos de dispensa de licitação até os aditamentos contratuais realizados ao longo da vigência dos contratos, com prorrogações que permitem que as empresas estejam atuando até hoje no município.

Foi a coincidência do nome de De La Rue aparecer nos dois contratos – da APL, como sócio, e da MedSaúde, como procurador – que acendeu o alerta no MP: o sócio de uma empresa aparecia como procurador da outra. Em dois meses, ele arrebatou os principais contratos públicos do ano e construiu um relacionamento com a prefeitura de Bento que resultou em pagamentos milionários que vêm sendo realizados há quase três anos.

Outros fatos mais recentes que chamam atenção é que De La Rue agora aparece como sócio-administrador da MedSaúde, que conta com um quadro societário de mais de uma centena de pessoas, e que a empresa terceirizada na área da saúde agora tem sede em Porto Alegre, na sala ao lado da sede da APL, no bairro São Geraldo. Antes, no primeiro contrato assinado com a prefeitura de Bento, a sede da empresa era localizada na cidade de Encruzilhada do Sul.

Entenda o caso

O contrato com a APL pôde ser celebrado com dispensa da licitação porque o Tribunal de Justiça do estado (TJRS) suspendeu em maio de 2020 o processo licitatório, por divergências no edital quanto à exigência de comprovação de experiência prévia da empresa contratada na prestação do serviço. Como o contrato com a CCS – empresa que prestava o serviço até aquele ano – se encerraria no mês seguinte e não havia interesse da prefeitura em renovar o compromisso, depois de impasses recorrentes entre a prefeitura, a empresa, os servidores terceirizados e o sindicato da categoria, a prefeitura de Bento alegou que não haveria tempo hábil para corrigir o processo licitatório e, assim, comprovou o caráter emergencial da necessidade de manutenção dos serviços e a contratação não precisou seguir os ritos legais previstos em um processo licitatório.

No dia 26 de maio daquele ano, menos de 20 dias depois da suspensão da licitação pelo TJ, a prefeitura publicava a autorização para a contratação emergencial da empresa GFG Recursos Humanos por 180 dias, a um custo de R$ 12,4 milhões, para fornecer a mão de obra para as secretarias e substituir a CCS após cerca de uma década de serviços prestados ao município. A intenção anunciada pelo governo municipal era recorrer da decisão que suspendeu a licitação e retomar o processo para definir a empresa que iria gerenciar a contratação de terceirizados para a prefeitura a partir de janeiro de 2021. Mas nada saiu como previsto, e mesmo a GFG não começou a prestar os serviços.

A prefeitura não contratou a empresa que ofereceu a melhor proposta, mas preferiu pagar cerca de R$ 1,5 milhão a mais para fechar com a APL Apoio Logístico, que aparece pela primeira vez no portal da transparência com seu nome original, APL Administradora de Pedágios. Mesmo que a contratação da empresa tenha sido feita por dispensa de licitação, a falta de uma explicação oficial para a substituição da GFG e o aumento do custo chamaram a atenção do MP local, que solicitou uma justificativa para a prefeitura sobre o que estava ocorrendo. Em ofício encaminhado como resposta pela Procuradoria-Geral do Município (PGM), a prefeitura confirmou que decidiu não contratar a GFG e encaminhou um relatório de diligência onde comprovaria que existiam conexões societárias entre ela e a CCS. As supostas conexões não são comprovadas no quadro de sócios das empresas que pode ser consultado no site da Receita Federal. A CCS tem dois sócios, Márcio Adriano Espíndola Marques e Enio Fioravante Prates, enquanto a GFG aparece como sendo de propriedade de Paulo Sérgio Leivas Lopes.

A substituição da GFG pela APL fez saltar o gasto da prefeitura com a contratação de serviços gerais terceirizados. O valor estabelecido pelo contrato original logo ganhou um aditivo de R$ 3,9 milhões, assinado no dia 30 do mesmo mês do contrato original. Um acréscimo de quase 30% no valor que fez a empresa garantir o segundo lugar na tomada de preços. A justificativa para o aumento foi o acréscimo de 319 cargos na secretaria de Administração e 502 cargos na secretaria de Educação a partir de julho.

Superfaturamento

No caso da MedSaúde, a contratação já era investigada pelo MP desde 2020. No enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, a prefeitura contratou a empresa com dispensa de licitação para a terceirização de serviços de enfermeiros e técnicos de enfermagem por um valor acima dos praticados habitualmente. A contratação da MedSaúde chamou a atenção do MP porque a comissão de licitação da prefeitura de Bento desclassificou as outras duas empresas concorrentes – o Instituto de Saúde Santa Clara e a empresa Sander Serviços Terceirizado – na fase de credenciamento, por não terem cumprido uma norma burocrática de identificação do envelope com a proposta. As empresas apresentaram recurso porque o erro não pode ser consertado pelos representantes legais da empresa que participavam da concorrência. O contrato com a MedSaúde foi alvo de críticas e revisões desde sua celebração original, primeiro porque os valores apontados como pagamento para determinadas funções estavam superfaturados, depois porque um dos sócios da empresa tinha contrato com o município como coordenador da Unidade de Pronto Atendimento 24H; agora, pela ligação com a operação da Força Tarefa que envolve o MP e a PF.

Neste contrato, a empresa receberia R$ 19,4 mil ao mês por enfermeiro contratado. O técnico em enfermagem demandaria o repasse de R$ 9,4 mil mensais à MedSaúde por profissional. O contrato entre a prefeitura e a prestadora de serviço não define a carga horária dos trabalhadores. A proposta de orçamento e o Diário Oficial também foram omissos neste item.

No Portal Transparência da prefeitura de Bento Gonçalves, era possível verificar à época que a maioria dos técnicos em enfermagem concursados recebiam salários brutos entre R$ 2,1 mil e R$ 3,5 mil, menos da metade do valor pago aos terceirizados. Já os enfermeiros, igualmente no Portal Transparência do município, tinham remunerações totais que, em maioria, variavam entre R$ 5 mil e R$ 11 mil, chegando a patamares de vencimentos quatro vezes menores do que os pagos aos profissionais da terceirizada. As discrepâncias chegaram à Câmara de Vereadores, que solicitou explicações para o caso. Na época, o então secretário da Saúde de Bento Gonçalves informou que os valores do contrato foram reduzidos de R$ 9,4 mil ao mês para R$ 7,1 mil. Os enfermeiros tiveram redução de R$ 19,4 mil para R$ 13,8 mil, ainda em patamares superiores aos dos concursados municipais.

Próximos passos

Depois de ter acesso a essas informações, o inquérito civil deverá entender o que realmente ocorreu nas concorrências sem licitação realizadas em 2020 em Bento Gonçalves, quais foram as reais motivações para os encaminhamentos, saber se os fatos estão interligados entre si de alguma forma e revelar qual o real envolvimento dos citados na Operação Camilo. E é exatamente por esta suposta ligação que o inquérito civil ganhou o status de segredo de justiça em meados do ano passado.