Os gastos indicados pelo Portal da Transparência da prefeitura de Bento Gonçalves relativos ao encerramento do mandato do ex-prefeito Guilherme Pasin (PP) chamaram a atenção pelos valores pagos a título de rescisão contratual na folha de pagamentos da prefeitura em dezembro do ano passado. Com um subsídio mensal em torno dos R$ 19 mil, Pasin recebeu no final de dezembro R$ 101.142,65 apenas como acertos de pagamentos trabalhistas relativos ao final do mandato. A grande parte dos recursos foi paga como férias, vencidas e não gozadas ou pagas pelo agente público. O ressarcimento, que segue a legislação, pago na folha de dezembro, foi um dos últimos atos do mandato de Pasin.
Conforme demonstra o contracheque indexado no portal da transparência, pelo menos R$ 60,4 mil destinados ao ex-prefeito são relativos a pagamento de férias. Pasin recebeu R$ 42.727,61 como indenização de um terço de férias vencidas (rescisão), e outros R$ 18.557,22 como um terço das férias proporcionais na rescisão. De acordo com a prefeitura, os cálculos se referem à indenização pelo não pagamento do período de descanso ao longo do último mandato de Pasin, entre 2017 e 2020. De acordo com nota da prefeitura, os pagamentos se referem a três períodos inteiros de férias e mais nove dias não gozados entre os quatro anos de mandato, o que indicaria que o ex-prefeito teria apenas recebido 21 dias de férias remuneradas em um período de quatro anos.
A rescisão do contrato de trabalho do agora ex-prefeito Aido Bertuol (PSDB) indica um pagamento de R$ 42.645,03, e ainda que não seja nem próximo do que foi pago ao ex-prefeito, a maior parte do que foi recebido também está relacionado a férias. Bertuol recebeu R$ 13 mil em férias proporcionais, R$ 8,6 mil sobre férias vencidas e outros R$ 7,2 mil como um terço sobre esses pagamentos.
Férias vencidas
Notícias publicadas pela imprensa ao longo do segundo mandato de Pasin demonstram que o prefeito gozou de períodos sem trabalho em todos os anos de seu mandato, por cerca de 10 a 15 dias ao ano em média, ainda que não se tenha notícia se os períodos tenham sido efetivamente remunerados à época. Como não há necessidade de autorização e nem formalização de posse ao vice-prefeito, as informações ainda não são totalmente acessíveis.
Nos quatro anos de mandato, há registro de que Pasin se afastou do trabalho pelo menos entre os dias 10 e 12 de fevereiro de 2017, entre 3 e 19 de janeiro do ano seguinte, de 25 de março a 2 de abril em 2019 e entre 20 de novembro a 4 de dezembro do ano passado. Ao todo, os períodos indicam cerca de 50 dias de férias em quatro anos. Em agosto de 2018, por exemplo, a imprensa noticiava que o vice-prefeito assumiria por 30 dias, enquanto Pasin cumpriria agendas particulares. De fato, o prefeito se ausentou do município para trabalhar na campanha eleitoral do candidato à presidência Geraldo Alckmin (PSDB), ainda que a forma de liberação para isso possa não ter sido o gozo de um período de férias.
A administração pública não informou detalhes sobre os procedimentos ou se efetivamente não houve a liquidação dos pagamentos devidos à época, e apenas esclareceu que os pagamentos se referem a três períodos integrais de férias e mais nove dias. De acordo com o comprovante do pagamento, não há como identificar se o servidor tinha o direito a tirar férias mas não havia gozado delas, se as férias foram tiradas e não pagas, ou ainda se o colaborador não tirou férias há mais de um ano, mesmo tendo adquirido o direito de fazê-lo, o que implicaria na obrigação de dobrar o vencimento.
Legalidade
As dúvidas com relação à forma legal que se deram estes pagamentos não representam diretamente alguma suspeita de irregularidade, mas apenas uma forma de garantia de que as normas administrativas tenham sido respeitadas. Para o advogado trabalhista Cleber Dalla Colletta, não há em princípio qualquer irregularidade na concessão dos benefícios. Ele lembra que, em 2017, o julgamento de um Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu no sentido de que o pagamento de abono de férias e 13º salário a prefeitos e vice-prefeitos não é incompatível com o artigo 39, parágrafo 4º, da Constituição da República. “O artigo 39, parágrafo 4º, da Constituição Federal não é incompatível com o pagamento de terço de férias e décimo terceiro salário”, afirma Dalla Colletta.
O pagamento destes adicionais aos agentes públicos nem sempre teve este entendimento, porque o cargo eletivo de gestor político não possui previsão legal de formar e concluir o período aquisitivo de férias para gozar 30 dias de descanso. No estado, um entendimento do Tribunal de Contas do Estado (TCERS) pacificou a questão em 2014, com a definição da necessidade de pagamento de benefícios como férias, 13º e suas proporcionalidades, e acabou com um dos grandes mitos que envolvem a relação de trabalho entre os servidores públicos ocupantes de cargos comissionados e os poderes públicos: o de que, em caso de exoneração, eles não possuem direito a receber as verbas indenizatórias advindas da rescisão do vínculo.
Ao contrário, a legislação atual permite a possibilidade de ressarcimento das férias não pagas, autorizando a conversão em dinheiro de apenas um terço das férias adquiridas e efetivamente não gozadas, e uma lei complementar garante que são indenizáveis as férias não gozadas. O acúmulo de férias vencidas é possível no caso de necessidade do serviço, o que significa que o servidor poderá deixar de usufruir as férias de um dado exercício para exercê-la em outro posterior. A limitação temporal de dois períodos tem a finalidade de proteger o servidor de abusos por parte da Administração Pública, que poderia se utilizar deste critério discricionário e enclausurar o servidor na repartição.
Nos tribunais superiores, vale o entendimento de que a impossibilidade legal de acumular férias vencidas e não tiradas por mais de dois períodos deve ser interpretada apenas para comprovação das férias pelo servidor, destinando-se tal regra à Administração, mas não implicando na perda do direito aos valores relativos às férias no caso do acúmulo por mais de dois períodos.
Em 2017, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela constitucionalidade de pagamento de férias a prefeitos e vices. Por maioria, venceu o voto proposto pelo ministro Luís Roberto Barroso, que divergiu parcialmente do relator, ministro Marco Aurélio. A decisão mudou um entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que havia julgado inconstitucional uma lei municipal que previa o pagamento de verba de representação, terço de férias e 13º aos ocupantes do Executivo local. Para o TJ, a norma feriria o dispositivo constitucional que impede o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de remuneração ou outra parcela remuneratória aos subsídios dos detentores de mandatos eletivos. Com o entendimento dos ministros Luiz Fux, que seguiu a divergência aberta pelo ministro Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, o terço de férias e o 13º ficaram garantidos como direitos de todos os trabalhadores, inclusive dos agentes políticos.
No caso dos valores pagos pela prefeitura, é possível dizer que a administração cumpriu com os novos entendimentos das cortes a respeito do caso, mas é a comprovação dos períodos e seus respectivos pagamentos que precisam ser melhor demonstrados para identificar se o ex-prefeito gozou dos períodos de férias sem receber regularmente no período. A inconsistência da resposta da administração atual em não detalhar todos os procedimentos acaba demonstrando que ainda há muito o que ser feito para garantir uma efetiva transparência das contas do Executivo.