Eu estava aqui pensando sobre a Constituição e naqueles que a idolatram como a essência do fenômeno constitucional; como se ela esgotasse e encerrasse o Direito Constitucional (e, logicamente, não é assim), sem muito cogitar de sua essência, geralmente, sob um enfoque democrático (não importa o quanto a democracia em si esteja desvirtuada).
Falando comigo mesma, um diálogo, portanto, com a minha alma, indaguei-me:
⁃ Por que algumas Constituições perduram por centenas de anos com tão poucas Emendas (a dos EUA, por exemplo), outras que viraram uma “Colcha de Retalhos” (a nossa que, vira e mexe e sai um remendo ou “Emenda”, e países que sequer têm uma Constituição escrita (Inglaterra, exemplificativamente)?
– Estamos ainda falando, semanticamente, da mesma coisa ou, se quiserem, com coisas que têm o mesmo sentido?
– Em que medida temos o direito presente de engessar uma Constituição para gerações futuras?
A que propósito cheguei a tais perguntas em um dia qualquer de pensamentos reflexivos? Explico. Porque estava falando com a “gurizada”, à mesa, no almoço, sobre um fato engraçado ocorrido no seio da minha família materna.
O assunto era uma tia minha, já falecida, que, quando nasceu, já estava prometida para se casar com uma pessoa pelo meu avô.
Ela não escolheu e não amou aquela pessoa. Simplesmente, cumpriu a promessa de seu pai. E aquela não foi a única questão: a tia, ainda, ao se casar, foi compelida a fazê-lo de vestido preto. “Por quê?”, indagou meu genro imediatamente (vendo tudo como um absurdo).
Respondi: “A justificativa era de que, se ela ficasse viúva, poderia aproveitar o vestido, já que não tinha mais que dois ou três. Também, porque, se precisasse ir a algum velório ou enterro, já tinha vestimenta apropriada.”
Era errado? Para os padrões de hoje, sim, completamente indigno. Um aviltamento da pessoa, dos seus sonhos, dos seus planos de vida e do direito de determinar o seu destino. Mas, na tradição, não era. E ninguém fazia aquilo com maldade ou mal intenção. O casamento não deu certo e, depois de ter dois filhos e sofrer muito, a tia se separou, quando a separação ainda era muito malvista e a mulher separada também.
Então, a solução é dispensar a tradição e justificar as relações sociais apenas na questão cultural? Se o exemplo cultural que dei não teria o menor cabimento para os dias de hoje, como tudo será em duzentos para gerações que não conheceremos, ou seja, daqueles que estão ainda por nascer?
Se isso é assim, ou seja, se a única coisa que importa é o elemento cultural de cada tempo e lugar, poderíamos achar que a cultura justifica, por exemplo, circuncisões, explosão de pessoas em nome da fé, externos humanos em nome do poder e objetificação de mulheres como subespécies em muitas culturas?
É claro que o elemento cultural vai ditar as regras em larga medida no ambiente social, como o fez ao longo de todos os tempos. Mas algumas manifestações são inaceitáveis em todos os lugares do mundo e em todos os tempos da história. Não se trata de verdades absolutas, nem das minhas verdades, mas de valores que são superiores e atemporais que não são passíveis de negociação em qualquer lugar do mundo. Tenham a explicação cultural que for, jamais poderão ser havidos por certos, como expressão do bem (aquele que tem consciência do mal).
Então, retomo os questionamentos daquele dia: o que faz uma Constituição perdurar por séculos, outras serem tão efêmeras, remendadas modo recorrente e surpreendente até, e, algumas, sequer existirem de forma escrita e, não obstante, serem tão respeitadas?
Desconfio que a resposta para essas perguntas esteja na essência dos valores que cada modelo constitucional cultua. Só os valores superiores da humanidade podem justificar que sejam eles perpetuados, conectando passado e futuro, em um mundo marcado por diferenças e pela impermanência, mas que, apesar disso, compartilha a mesma humanidade e existência ou aventura na Terra.