A empresa chinesa ORA, pertencente ao grupo GREAT WALL MOTORS, apresentou na feira Shangai Auto Show de 2021 um carro elétrico batizado de ORA PUNK CAT. O problema é que o PUNK CAT é praticamente um sósia do icônico FUSCA. Abaixo vemos uma das fotos de divulgação do veículo na feira e podemos constatar a inegável semelhança com o velho fusca. A forma geral é a mesma, diferem em alguns detalhes, mas é praticamente impossível não fazer a associação com o carro da alemã Volkswagen, que aparentemente não gostou nada da história e está estudando que medidas judiciais podem ser tomadas.
As questões que imediatamente surgem são: Isto é lícito? Pode ser impedido pela volkswagen? Ou a Ora está atuando dentro dos limites da liberdade de concorrência?
Inicialmente é importante saber se a Volkswagen tem algum direito proprietário sobre a forma do fusca, que lhe permita impedir terceiros de reproduzi-la. Deve-se ressaltar que a propriedade industrial é concedida por um país para incentivar investimento em inovação e o consequente desenvolvimento econômico que isto gera. Para tanto, o Estado concede a exclusividade de exploração da criação por um tempo determinado, considerado suficiente para que o criador obtenha o retorno do investimento realizado, depois do qual o objeto cai em domínio público e pode ser aproveitado por toda a sociedade. Em outras palavras, é um direito de propriedade temporário e resolúvel, que tem data para acabar. O tempo médio da exclusividade proporcionado ao redor do Mundo é de vinte anos. Em tese, a queda no domínio publico significa que pode ser fabricado e comercializado por quem desejar.
A proteção da propriedade industrial pode recair tanto sobre criações técnicas, protegidas pela concessão de patentes, como criações estéticas, protegidas por registros de desenho industrial ou patentes de design (dependendo da legislação do país). Um desenho industrial bem desenvolvido pode individualizar um produto de seus concorrentes e caracterizar o principal atrativo do consumidor, do que decorre seu valor econômico e se justifica a proteção. No caso estamos tratando da forma plástica ornamental de um veículo, isto é, a forma tridimensional responsável pela aparência do produto. O fusca foi criado e passou a ser fabricado na Alemanha em 1934, sofrendo poucas alterações em sua forma geral ao longo dos anos. Mesmo que se considere que o Punk Cat se inpira em algum modelo dos anos 60 ou 70 do século passado, a proteção já expirou há muito tempo e a forma está em domínio público.
Para complicar ainda a situação, a Great Wall Motors requereu registro da forma ornamental do produto na Europa e patente de design na China. Na Europa o registro foi concedido e contempla duas formas diferentes do veículo, abaixo reproduzidas. A pergunta é se este registro é válido, considerando a semelhança com o fusca.
Tanto o registro na Europa quanto a patente de design da China não sofrem exame de mérito, ou seja, não é feita uma busca de anterioridades para determinar as formas existentes anteriormente para o produto e, consequentemente, nem uma comparação com a forma requerida para verificar se satisfaz os requisitos legais para a concessão. É feito apenas um exame de aspectos formais (não incidência em proibições legais, qualidade dos desenhos apresentados, etc.) e o registro/patente é concedido. Uma vez concedido, terceiros interessados podem instaurar um procedimento de invalidação do título que tenha sido concedido em infringência às disposições legais. Aliás, é uma sistemática muito semelhante a do Brasil, que concede automaticamente qualquer registro de desenho industrial requerido e deixa para os interessados instaurarem processo de nulidade. Assim como são praticamente os mesmos requisitos para a concessão, cuja ausência serve de base para a invalidação do título. O desenho industrial deve ser novo (diferente do que já existia) e deve ter caráter visual próprio (não pode se confundir com o que já existia). Provavelmente a primeira medida da Volkswagen será instaurar procedimentos de invalidação do registro e da patente e, pela grande semelhança, com boas chances de obter sucesso.
Agora, mesmo que a Volkswagen não tenha mais nenhum registro ou patente vigente sobre o desenho do fusca, isto não significa que não possa tomar nenhuma medida legal contra a Ora e sua controladora. O fusca é um desenho clássico mundialmente conhecido, que foi criado há quase noventa anos e esteve em produção por décadas. É um carro que até hoje é objeto de desejo de colecionadores, tem legiões de admiradores, que se organizam em clubes e promovem encontros internacionais. A idolatria é tanta que há até um dia mundial do fusca (22 de junho – data em que foi assinado o contrato de desenvolvimento do carro na Alemanha em 1934). Então, é muito difícil acreditar que a ideia de desenvolver um carro elétrico com um desenho claramente baseado no do fusca não tenha a intenção de atrair este público consumidor e se beneficiar da notoriedade do veículo. Ao fazer e lançar no mercado uma imitação do clássico fusca, a Great Wall Motors pode estar se aproveitando de uma imagem e notoriedade que não criou e não ajudou a manter, pode estar se locupletando do trabalho e investimento alheio e usurpando um valor imaterial que não lhe pertence. Este tipo de demanda judicial prescinde da existência de título (registro ou patente), pois o que está em questão é a violação de um ativo imaterial que faz parte do aviamento de uma empresa. Evidentemente são casos difíceis, pois a linha entre a liberdade concorrencial e o abuso de direito e cometimento de ato ilícito é tênue e de difícil demarcação. Diferentes países tratarão de modo diferente a questão, alguns judiciários são mais rígidos com este tipo de comportamento e outros menos, mas é certo que estas circunstâncias particulares podem basear demandas judiciais, principalmente na Europa. No Brasil, que vem da mesma tradição jurídica europeia, isto poderia ser tratado como uma forma de aproveitamento parasitário, baseado na vedação ao enriquecimento sem causa (se consideramos que as empresas não são concorrentes diretas), ou como um ato de concorrência desleal (se forem concorrentes diretas no mesmo nicho mercadológico), com fundamento na Lei da Propriedade Industrial (LPI) e em tratados internacionais que o Brasil é signatário – como a Convenção da União de Paris (CUP).
Os resultados são de difícil previsão neste momento, mas o certo é que a briga está só começando.
Especial para Leouve:
Adriano Marcelo Gazzola Bedin – Advogado na Creazione Marcas e Patentes
Mestre em Direito da Empresa e dos Negócios – Agente da propriedade industrial