Opinião

Diga-me se isso é justo?

Diga-me se isso é justo?

Em um dia de 1979, Harriet Simmons, mãe de sete filhos, saiu de seu local de trabalho em Raleigh, rumo a Nashville, no Tenesse-Estados Unidos, para visitar amigos e ir a uma festa. Foi a última vez que foi vista. Nunca chegou ao seu destino, nem voltou para os seus filhos.

Cerca de uma semana depois, o carro dela foi encontrado, estacionado e com um pneu furado (com um prego, ao que lembro) ao longo da I-40, no condado de Iredell. Salvo o pneu furado, o veículo estava intacto. Periciado, nele só havia as digitais da própria Harriet.

Passado quase um ano, o corpo de Harriet foi encontrado em meio a uma floresta de Asheville. Ela foi identificada pela arcada dentária, com perícia odontológica. Dela, só restou o esqueleto, cujos ossos davam conta de que a Senhora Simmons havia sido morta a golpes de arma branca, provavelmente uma faca. Contudo, a Polícia arquivou a investigação (lá pode, porque, depois de ter envidado todos os esforços investigatórios, e não ter logrado êxito em identificar quem era autor do crime, a própria Polícia pode arquivar).

Alguns meses depois foi a vez de Betty Sue McConnell, uma jovem de 21 anos, que, à sua vez, foi arrebatada e morta com múltiplos golpes de faca no peito, sendo que seu corpo foi jogado dentro de um rio. Ela, ainda com vida, foi localizada por um casal. Ofegante, conseguiu dizer, antes de morrer: “eu fui pega no trabalho por dois caras”. O caso de Betty Sue McConnell também esfriou. Adotadas todas as investidas legais possíveis, a Polícia não chegou a uma pista sequer de seus assassinos.

Cerca de oito anos após, outra garota de 19 anos de idade, Jerri Ann Jones, em Charlotte, foi igualmente assassinada, depois de arrebatada, enquanto esperava uma carona de casa para o trabalho. O corpo dela foi adiante localizado com a garganta cortada. A única pista que a Polícia encontrou foi uma bagana de cigarro localizada próxima ao corpo de Jerri Jones. O material foi recolhido para o caso de, no futuro, à vista de novas tecnologias, ser possível identificar quem havia fumado aquele cigarro.

Decorridos quase 20 anos do primeiro homicídio, a Polícia do Tenesse recebeu um telefonema que culminaria, ao longo de uma história, com a identificação do assassino de todos os casos. Uma determinada pessoa, estando à beira da morte, não queria levar para o túmulo um tal segredo: confessou à Polícia que estava junto com o assassino na noite do crime de 1979 e sabia, por isso, quem havia matado Harriet Simmons, depois de estuprá-la: “foi Terry Alvin Hyatt”, disse ele.

Depois da delação, a Polícia identificou e localizou o autor do crime, o Terry Hyatt. Ele forneceu o seu DNA (saliva), a propósito de ser excluído da autoria de outro crime, mas acabou confessando-se autor da morte de Harriet Simmons. Naquele caso, o material fornecido não serviu para nada. Ficou apenas armazenado. Pelo crime, Hyatt recebeu pena de morte por matar a Senhora Simmons.

Entretanto, em 2003, a Polícia de Charlotte-Mecklenburg, depois do caso já ter “esfriado” (jargão policial) completamente, ligou o crime de que foi vítima Jerri Ann Jonnes com o homicídio de Harriet Simmons. Na oportunidade, encaminhou à perícia a bagana de cigarro, para exame de confronto de DNA com o material fornecido por Hyatt por ocasião da prisão dele, e as amostras bateram: Terry Alvin Hyatt negou conhecer a vítima, dizendo que nunca esteve em Charlotte, mas o seu DNA estava lá. Acabou confessando todos os homicídios e recebeu outra pena de morte.

Por que eu trago ao leitor o caso de Terry Alvin Hyatt?

Quero desafiá-lo a dizer se um caso assim poderia acontecer no Brasil.

Pensou? Não Senhor, não senhora!

Claro que seria possível, do ponto de vista técnico, realizar, hoje, no Brasil, exame de confronto de DNA, para identificar uma pessoa e saber se se trata da mesma pessoa envolvida em situações diferentes. Entretanto, no Brasil, passados vinte anos de um crime, mesmo se identificado o seu autor, ele não será punido, porque, em nosso país, se você chamar uma pessoa de “macaco”, isso não prescreve nunca; poderá responder criminalmente por isso a qualquer tempo de sua vida; mas se você matá-la, não! Se matar, é só aguardar 20 anos!

Além dessa desgraçada incongruência e impunidade que o sistema permite, para punir Terry Hyatt, se ele matasse as três pessoas no Brasil, teríamos que nos propor, ainda e primeiramente, a nos investir numa discussão interminável sobre a questão do DNA, aquele encontrado na bagana de cigarro ao lado do corpo de Jerri Ann Jones. Não faltam decisões de Juízes e Tribunais, neste país, que entendem como prova ilícita a saliva recolhida de tocos de cigarro fumados por acusados durante depoimentos na delegacia ou na cena do crime.

A Lei 12.037/2009, com as alterações da Lei 12.654/2012, no objetivo de impedir que uma pessoa seja processada no lugar de outra, criaram hipóteses de identificação criminal obrigatória para condenado; e, para os condenados por delitos graves, também a colheita de material biológico ou extração de DNA (saliva, cabelo, enfim, nenhum método substancialmente invasivo). isso após a condenação transitada em julgado, na fase da execução da pena, para integrar um banco de dados nacional, acessível apenas por autoridades com poder investigatório, com prévia e fundamentada autorização judicial.

Isso veio reforçado pela Lei Anticrime, a Lei 13.964/2019, que buscou, de certo modo, superar essa questão, para permitir que os titulares dos dados genéticos tivessem acesso a eles, para discutir a questão da cadeia de custódia da prova e o que mais entenderem de direito. Certamente, a novel legislação terá de superar o entendimento de que ninguém é obrigado a fazer DNA, questão que não pode passar, a meu ver, sem uma uma análise sob o princípio da proporcionalidade, a uma, porque não há uma real invasão com a coleta de saliva e de fios de cabelo. A duas que o direito da pessoa viver e não ser exterminada, nem violada em sua integridade biopsíquica, como a segurança e a justiça também são garantias e direitos fundamentais assegurados em nossa Constituição.