O Monumento Nacional ao Imigrante, que na origem demarcava um dos principais acessos a Caxias do Sul e hoje já está praticamente envolvido por dois hemisférios da área urbana do município, segue fazendo justiça à composição do povo que se espalha a seus pés. 69 anos após a instalação, a peça que homenageia os colonizadores de diversas etnias que chegaram no território há quase um século e meio, agora encara o desembarque de um contingente que só em 2023 chegou a cerca de 50 nacionalidades.
No início de agosto, a rede municipal de ensino alcançou a marca de 1221 crianças e estudantes que não têm o Português como primeira língua. O número corresponde a 2,71% do total de 45 mil matriculados desde o nível de berçário até a Educação para Jovens e Adultos (EJA) nas escolas mantidas – de maneira integral ou por gestão compartilhada – pela Secretaria Municipal de Educação (SMED).
Se o mesmo índice fosse aplicado à população geral do município, que o Censo 2022 do IBGE estimou em 463.338 pessoas, a cifra chegaria a 12.510 estrangeiros. A título de comparação, seria quase o mesmo que uma Antônio Prado inteira (12.980 habitantes) falando espanhol, francês, creolle, wolof e outros desdobramentos linguísticos antes do idioma de Camões, Machado de Assis ou, em se tratando das primeiras experiências com livros na escola, Ruth Rocha e Ana Maria Machado.
“A língua estrangeira não pode ser empecilho para o direito de acesso à educação. Se o estudante possuir a documentação necessária, ele será colocado no ano em que o estudo comprova. Não tendo, eles são igualmente acolhidos e a escola faz a classificação, normalmente, realizando um diagnóstico inicial do nível de conhecimento de cada um ou alocando pela idade nas devidas turmas. Assim, as professoras trabalham com estes estudantes flexibilizando as questões de currículo e linguagem”, explica a diretora pedagógica da SMED, Paula Martinazzo.
Um desafio extra para o quadro de educadores e professores do município, especialmente na etapa de alfabetização, que já vêm enfrentando um pacote novo de dificuldades impostas pelos dois anos que a garotada passou afastada das salas de aula e da convivência diária com colegas e preceptores, em função da pandemia. Os profissionais vinham se desdobrando para fazer o melhor possível, diante de um contexto novo e inesperado. Até agora.
Desde a segunda semana de agosto, já está em curso uma nova formação continuada desenvolvida pela SMED, em parceria com o Programa de Línguas Estrangeiras (PLE) da Universidade de Caxias do Sul (UCS), com o propósito específico de instrumentalizar os professores do Projeto de Recuperação e Recomposição das Aprendizagens (PRA) a atuar com os estudantes estrangeiros – independentemente da faixa etária.
Inicialmente, a capacitação ocorre em língua espanhola, que é a predominante entre os migrantes (veja abaixo o perfil delineado pelos acessos à Central de Informação ao Imigrante, da Prefeitura). No momento, 49 escolas da rede estão inseridas no projeto. A participação e a prioridade são definidas a partir do número de estrangeiros matriculados em cada instituição.
O primeiro módulo, sobre fonética e fonologia, foi ministrado pela assessoria técnica do Núcleo de Fonoaudiologia da SMED – COMUNICAR. O segundo módulo ocorrerá nesta quinta-feira (17), na UCS, em parceria com o PLE, e abordará a base lexical e convergência das duas línguas, português e espanhol.
“Estes dois momentos de formação têm como objetivo embasar os professores do PRA a fim de atuar junto aos estudantes estrangeiros, em sua maioria falantes do espanhol. Depois destes momentos de formação inicial, a assessoria do PRA continuará monitorando e assessorando os professores para dar continuidade ao trabalho”, revela a assessora técnica pedagógica da SMED, Nicole Martini.
Para além do atendimento aos estudantes estrangeiros, o PRA atuará nas necessidades de aprendizagem voltadas à alfabetização, no caso dos Anos Iniciais, e também às necessidades voltadas à leitura e escrita, especialmente aos estudantes de 6º ano.
Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Afonso Secco é exemplo no uso de material didático para alfabetização de imigrantes e refugiados em Caxias do Sul
Com um número considerável de pequenos imigrantes em suas salas, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Afonso Secco, na região da Parada Cristal, em Caxias do Sul, integra o projeto de desenvolvimento de um material didático específico para alunos estrangeiros e refugiados, discutido e idealizado em parceria com a unidade de Bento Gonçalves do Instituto Técnico Federal do Rio Grande do Sul (IFRS).
O e-book intitulado Material didático de alfabetização para estudantes imigrantes e refugiados da Educação Básica, pretende auxiliar os estudantes a se familiarizar com o português falado no Brasil e tornar o aprendizado do idioma mais fácil e descomplicado.
A coordenadora do projeto e professora do Instituto, Carina Fior Postingher Balzan, destaca que o material foi desenvolvido a partir da demanda verificada na formação de professores para o ensino de Português como Língua de Acolhimento (PLAC). Além dela, participaram do projeto a professora Cristina Bohn Citolin e as alunas de licenciatura em Letras, Alissa Turcatti e Júlia Sonaglio Pedrassani.
A ferramenta é multifuncional, unindo palavras, imagens e sons, em três línguas: português, crioulo haitiano e espanhol. E está disponível no repositório do IFRS, nas versões professor e aluno, por meio deste link.
“Nos encontros com o corpo docente, os professores salientaram a necessidade da existência de um material voltado para crianças imigrantes e/ou refugiadas em fase de alfabetização e que não possuem o português como língua materna. O projeto começou a ser desenvolvido no ano de 2022, dando continuidade à pesquisa iniciada em 2019 sobre a temática das migrações forçadas”, descreve Carina.
A partir da demanda apresentada, o IFRS de Bento Gonçalves, em parceria com a EMEF Afonso Secco, começou a desenvolver o material, que foi enviado para análise da equipe diretiva e passou a ser aplicado em sala de aula pelos professores da escola municipal. Em abril de 2023, o material completo e finalizado passou a ser disponibilizado para qualquer instituição educacional do estado. A coordenadora pedagógica da escola da rede municipal de Caxias do Sul, Fernanda Molin dos Passos, ressalta a relevância do projeto para os alunos.
“Este material demonstra o quanto valorizamos os alunos. Que a escola é um espaço que respeita a cultura que eles trazem de seus respectivos países e deseja que eles preservem suas raízes de algum modo”, afirma.
Na Afonso Secco, os professores utilizam o material nos meios digital e físico. Nas atividades práticas, são distribuídas cópias para todas as crianças e estudantes. Já os materiais visuais e auditivos são apresentados por meio de televisões, em sala de aula.
Entre os pequenos imigrantes da escola, a venezuelana Valéria, nove anos, afirma gostar bastante de estudar o idioma nativo com os colegas e que apesar de apreciar o português, ”o espanhol ainda é meu dialeto favorito”.
Já o pequeno Manoel, 11 anos, também vindo da Venezuela, revela ser o único de sua família a compreender bem o português e que faz o papel de intérprete entre os pais e as demais pessoas na hora de se comunicar. E também está satisfeito com o método encontrado pela escola para preservar sua língua materna e aprender uma nova.
Indo além da sala de aula, é possível ver pelos corredores da escola, etiquetas com o nome dos espaços nas três línguas predominantes, o português, espanhol e o crioulo haitiano para que todos os estudantes possam conhecer e dominar os três dialetos.
“Além daqueles que chegam com outras línguas maternas, precisamos lembrar que há também aqueles que estão nascendo brasileiros, mas só vão se apropriar do Português na escola, por meio do trabalho dos professores”, assinala a diretora da EMEF Afonso Secco, Ângela Maria Honorato.
Fotos: Natália Silvestre Soares
Perfil dos atendidos pela Central de Informações ao Imigrante de Caxias do Sul
Em 2023
• Maioria reside em: Caxias do Sul (212)
• Nacionalidade predominante: Venezuelana (201)
Em 2022
• Pessoas atendidas: 1834 imigrantes
• gênero: 995 masculino e 838 feminino
• grau de escolaridade: 652 possuíam ensino médio completo, 282 tinham ensino fundamental incompleto e 62 eram menores não estudantes
• faixa etária: 487 estavam entre os 21 e 30 anos
• estado civil: 1327 eram solteiros
• número de filhos: 835 não tinham filhos
• condição de trabalho: 713 eram empregados formais
• Renda mensal: 865 não possuíam e 106 recebiam de 2 a 3 salários mínimos
• A maioria dos atendidos foi de venezuelanos que residem em Caxias
Número de migrantes registrados em Caxias do Sul de janeiro/2000 a março/2022: 7.1412
• Principais nacionalidades ao longo do período: Haiti(37%); Venezuela (17%); Senegal(13%); Uruguai(5%) e Colômbia (5%)