Em meio a procedimentos de investigação do Ministério Público (MP), licenças negadas pelos órgãos ambientais do município, brechas na legislação ambiental, denúncias de desmatamento irregular, suspeitas de falsidade ideológica e obras realizadas pela prefeitura de Bento Gonçalves em um empreendimento particular, o caso da canalização de dois cursos d’água em uma área particular localizada no Loteamento Paim, no Bairro São João, em Bento Gonçalves, se arrasta há quase uma década sem uma solução definitiva. Nas últimas semanas, uma denúncia da Organização Não-Governamental (ONG) Associação Ativista Ecológica (Aaeco) constatou o desmatamento de árvores em Área de Proteção Permanente (APP) e o início de obras para a canalização dos arroios. A denúncia resultou em uma nova investigação aberta pelo MP para apurar as responsabilidades pelas obras iniciadas por uma empresa terceirizada, a pedido da prefeitura.
Mas o caso se arrasta pelo menos desde 2012, há 10 anos, quando uma solicitação de moradores do loteamento para a solução do problema de esgoto correndo a céu aberto no local deu início à primeira investigação instaurada pelo MP para tentar mediar com a prefeitura uma solução para essa situação. No ano seguinte, o promotor especial à época, Élcio Resmini Menezes, sugere ao município a construção de uma Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) na região depois que moradores do loteamento, não regularizado, procuraram o MP por alegar que não teriam condições de instalar sistemas individuais de fossa e filtro para eliminar o problema do derramamento de esgoto em dois arroios que passam pelo local e deságuam no Rio Pedrinho, um dos principais rios da cidade.
Em agosto de 2013, a prefeitura, sob o comando do então prefeito Guilherme Pasin, no primeiro ano de mandato, se comprometeu a encaminhar uma solicitação para que a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMAM) realizasse estudos para a implantação da estação, o que não ocorreu até hoje. Uma justificativa para que a prefeitura não levasse adiante a demanda é que o Plano de Saneamento Básico Municipal, definido a partir da renovação de contrato com a Corsan, já prevê a construção da ETE Vinhedos, que não saiu do papel.
Empresa solicita canalização em 2019
Cerca de seis anos depois, em 2019, sem uma solução para o problema do esgoto, a empresa Ghelen Administração de Imóveis encaminhou à prefeitura uma solicitação para a canalização do esgoto que corria a céu aberto em um terreno de sua propriedade, a fim de instalar pavilhões industriais no local. A solicitação foi indeferida pela SMMAM em um documento assinado pelo secretário Claudiomiro Dias em setembro daquele ano. O laudo do setor de Licenciamento Ambiental da prefeitura, assinado pela bióloga Isadora Cervo e pelo engenheiro químico Joelson Pazinato, apontou na época que a medida mais adequada seria a instalação de uma estação de tratamento e a recuperação da APP com o plantio de árvores nativas, e que a canalização dos arroios e a supressão da mata ciliar às margens deles iriam “comprometer as funções ambientais” do local.
Mas a negativa da secretaria não encerrou o caso e, em fevereiro de 2021, já sob o governo de Diogo Siqueira, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ipurb) solicitou uma nova análise do setor de licenciamento ambiental e deu início a uma série de idas e vindas, laudos contraditórios e uma indicação de brechas na legislação para conseguir aprovar a intervenção. O novo parecer reforçou a avaliação realizada em 2019 e sugeriu novamente que o despejo de esgoto sem tratamento proveniente de cerca de 40 residências do loteamento, algumas construídas dentro da APP, poderia ser resolvido “através da aplicação de medidas de saneamento básico, ou seja, instalação, operação e monitoramento de sistemas de tratamento de efluentes, algo que a tubulação proposta não tem condições de proporcionar”.
MP cobra esclarecimentos sobre esgoto a céu aberto
Nesse período, o MP voltou a notificar a prefeitura para que prestasse esclarecimentos sobre o caso do esgoto a céu aberto. Como resposta, a prefeitura informou que elaborou o projeto de canalização, ignorando o parecer contrário do licenciamento ambiental, e afirmou, em documento assinado no dia 22 de março do ano passado pela atual diretora do Ipurb, Melissa Bertoletti Gauer, então diretora-adjunta do instituto, que a obra estava classificada como “de interesse social”, e anexou um laudo do engenheiro civil Simão Carraro, atestando que os “fluxos hídricos não possuem qualquer tipo de utilização, uma vez que sua origem é de despejos de efluentes líquidos”.
A informação não encontrava sustentação técnica: em uma Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) assinado pela engenheira agrônoma Sheila Haiduck Padilha atestava a existência de “dois cursos hídricos naturais”, e apontou a existência de 758 árvores nativas no local. O laudo indicou que seria necessária uma reposição obrigatória de 4.447 mudas nativas para recuperar a área.
Laudo geológico, parecer ignorado e orientação da PGM
A resposta da prefeitura foi amparada em um laudo geológico assinado pelo geólogo Luiz Pinto de Jesus Filho, que deu parecer favorável à obra, por se tratar de interesse social, e porque “fazer o saneamento da cidade é inviável em função de custo e tempo”. A partir disso, a estratégia do Ipurb e da chefia da SMAMM foi solicitar um laudo à Procuradoria-Geral do Município, que apontou, em meio, o caminho a ser adotado. O procurador Sidgrei Spassini afirmou que o caso poderia ser enquadrado em uma das exceções da lei que impede intervenções em áreas de proteção: a comprovação de que a canalização “promoveria benefícios ambientais”, ainda que o licenciamento ambiental apontasse o contrário. Além disso, o procurador indicou que, como a lei proíbe o Poder Público de realizar obras em área particular, seria necessário que o Ipurb justificasse a necessidade obra e que o município instituísse uma “servidão administrativa” no terreno particular.
O parecer da PGR deu início à operação. Em maio, o então secretário Dias assina um despacho lacônico ao Ipurb: “Para tratar”, escreve. Dois dias depois, o Ipurb encaminha o requerimento para “obra de interesse social”, justificando que não existe outra alternativa, devido à topografia do local e as condições elencadas no laudo geológico, e enquadra o projeto nas exceções legais para intervenção em APP. No mesmo dia, o secretário do Meio Ambiente aprova a solicitação. Quatro dias depois, um novo parecer do Licenciamento Ambiental reafirma o indeferimento para a licença de instalação, mas é ignorada pela SMAMM, que, no início de junho, expede a primeira licença de instalação e autoriza o corte das 758 árvores nativas existentes na área. Quase cinco meses depois, uma nova licença corrobora os termos.
Antes disso, em agosto, o Conselho Superior do Ministério Público homologa o arquivamento do inquérito civil, alegando que o contrato com a Corsan prevê a construção da ETE Vinhedos e a ausência de justa causa para o prosseguimento das investigações na esfera criminal, alegando que um procedimento administrativo analisa o caso.
Novas denúncias e suspensão da obra
No início deste ano, o MP informou o arquivamento da investigação, e as obras puderam finalmente iniciar, mas as denúncias de irregularidades voltaram a assombrar a prefeitura e, novamente, provocar uma ação do MP. A denúncia da Aaeco surgiu a partir da verificação de que a retirada de mata nativa do local estaria além do que a legislação permite, e resultou na constatação de outras suspeitas de irregularidades. Uma delas identificou que as placas colocadas no local, que informavam os números das licenças de instalação do empreendimento não correspondiam aos processos relativos ao local. Em nome da empresa Ghelen Administração de Imóveis – cujo proprietário é um dos sócios da empresa envolvida no caso da retirada de 2,6 hectares de mata às margens da BR-470, que é considerado como o maior desmatamento irregular da história do município –, os números que constavam na placa se referiam a outros empreendimentos, em nome de uma empresa de plásticos e outra de estofados.
Além disso, a ONG também constatou que as licenças não levaram em consideração as determinações legais para a proteção de nascentes, e comprovou que a canalização estava sendo realizada pela prefeitura em um local de propriedade privada. A prefeitura alega que isso faz parte de um acordo para a realização de medidas mitigatórias definidas como contrapartida em outros empreendimentos.
Aberto depois de receber as denúncias da Aaeco, a nova investigação do MP, sob a responsabilidade da promotora Carmem Lúcia Garcia, pretende esclarecer, entre outros pontos, porquê a prefeitura está realizando as obras de canalização de dois cursos d’água no local particular e o motivo para que uma empresa privada esteja realizando o trabalho. A promotoria deu prazo de 15 dias para que a secretaria do Meio Ambiente encaminhe a documentação sobre o caso.
No final de março, a PGM solicitou a suspensão das obras para que seja realizada uma reanálise dos processos que resultaram no licenciamento. Com a abertura do inquérito, as obras devem ficar paralisadas pelo menos até o final do prazo estabelecido pelo MP.
Confira a cronologia do caso:
2012 – Moradores pedem e MP abre inquérito civil para mediar solução para o esgoto a céu aberto
2013 – 01/08: Em audiência, moradores alegam não ter condições para construir fossas e filtros individuais
– 16/08: Ipurb se compromete a estudar instalação de ETE na APP
2019 – Empresa Ghelen Administração de Imóveis solicita licença para canalização dos arroios
– 30/09: Licenciamento Ambiental emite parecer contrário à canalização e SMAMM indefere licença de instalação
2021 – 02/02: SMAMM abre novo processo para licença de instalação
– 25/02: Ipurb solicita nova análise ao Licenciamento Ambiental para projeto de canalização
– 11/03: Laudo de Cobertura Vegetal indica 92,2% de árvores nativas e reposição de 4.447 mudas
– 15/03: MP solicita esclarecimentos sobre esgoto a céu aberto
– 22/03: Prefeitura responde que elaborou projeto de canalização, indica que obra tem interesse social e apresenta laudo que afirma que cursos d’água não possuem utilização
– 09/04: SMAMM solicita parecer jurídico à PGM
– 03/05: Parecer da PGM aponta caminhos para liberar a obra
– 15/05: Laudo Geológico é favorável à canalização. SMAMM emite solicitação de encaminhamento ao Ipurb
– 17/05: Ipurb faz enquadramentos e encaminha solicitação para licenciamento. SMAMM aprova execução da obra
– 21/05: Licenciamento Ambiental emite novo parecer desfavorável à canalização
– 01/06: SMAMM expede licença de instalação
– 24/08: MP arquiva inquérito civil
– 27/10: SMAMM emite nova licença de instalação
2022 – Obras iniciam no local
– 24/02: MP informa à PGM arquivamento do inquérito civil
– 10/03: ONG denuncia irregularidades nas obras
– /03: MP abre novo inquérito civil para apurar denúncias
– 29/03: PGM solicita suspensão das obras para reanálise