Quando a adolescente de 14 anos procurou a professora da escola em que estuda para denunciar que sofria abuso sexual praticado pelo próprio pai, em maio de 2022, se descortinava uma prática que preocupa cada vez mais as autoridades de Bento Gonçalves. No caso da menina, a investigação da polícia apurou que os repetidos abusos aconteciam também contra a irmã da vítima. O acusado do crime, um homem de 32 anos, foi preso no interior do Paraná dias depois, e segue preso enquanto aguarda o julgamento.
Mas nem sempre o desfecho é esse. E o relato das irmãs passa longe de ser um caso isolado. A cada três dias, uma criança é vítima de violência sexual em Bento Gonçalves. Os números alarmantes fazem parte do relatório de dados estatísticos do Sistema de Informação Para a Infância e Adolescência – (Sipia-CT), e se referem a todo o ano de 2022. O relatório aponta que foram registradas 112 ocorrências de violência sexual contra crianças e adolescentes na cidade ao longo do ano passado. Além disso, o relatório indica 139 casos de violência física e 32 casos de violência psicológica.
De acordo com o Conselho Tutelar, os números representam um aumento em relação aos dados de 2021, mas também podem apresentar discrepâncias, uma vez que alguns casos só foram identificados por conta do retorno às aulas presenciais nas escolas do município, após o final do período de restrições provocadas pela pandemia da Covid-19. Ao todo, o conselho atendeu a 1.736 ocorrências, e foram cadastradas no Sipia 1.528 violações de direitos contra crianças e adolescentes, o que representa uma média de quatro ocorrências por dia na cidade, e 3.082 crianças e adolescentes tiveram seus direitos ameaçados ou violados pelos pais, responsáveis ou pelo Estado.
De acordo com Simone Menegotto, coordenadora da proteção social especial da prefeitura de Bento, a assistência social do município faz parte do Comitê Municipal de Enfrentamento das Violências contra Crianças e Adolescentes, órgão responsável pela construção do Fluxo Integrado de Atenção às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual, que orienta as ações de combate à violação dos direitos.
Com relação aos casos de violência sexual, os ofícios do Conselho Tutelar com estas situações são encaminhadas ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que é o responsável por atender as famílias de crianças vítimas de abusos. Essas famílias são acolhidas através do Serviço de Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), onde os profissionais realizam o trabalho social de fortalecimento da função protetora da família.
“Percebemos aumento dos encaminhamentos recebidos do conselho com o relato de suspeita de violência sexual contra crianças e adolescentes, e entendemos que isso ocorreu devido ao trabalho realizado pelo referido Comitê, que, além de capacitar os profissionais da rede de proteção de crianças e adolescentes, buscou a aproximação e a articulação com toda a rede de proteção, atendimento e responsabilização permitindo a realização de um trabalho mais eficiente e eficaz”, afirmou a coordenadora, que informou que o o Creas atendeu, só no ano passado, 101 casos de suspeita de violência sexual.
Para a Delegada Deise Salton Brancher Ruschel, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Bento Gonçalves (Deam), que é também responsável pelos atendimentos dos casos que envolvem crianças e adolescentes no município, ainda não é possível afirmar que os casos de violência sexual aumentaram na cidade em 2022. Ela firmou que ainda está avaliando os dados do conselho em análise com os atendimentos da Deam, e espera apresentar em março um estudo do caso.
Além dos episódios de violência, o sistema verificou 697 casos de violação à dignidade ou de negligência familiar contra menores até 16 anos. Entre eles, 320 são casos de omissão com a educação escolar e a formação intelectual, 198 são de omissão no cuidado com a saúde, alimentação e higiene, 160 se referem à ausência de cuidados com a proteção e segurança e 19 ocorrências tratam da falta de apoio emocional e psicológico aos menores de idade. O conselho também atendeu 216 casos de inadequação do convívio familiar e 28 casos de privação ou dificuldade neste convívio. No ambiente educacional, 155 crianças estavam fora do Ensino Fundamental ou enfrentavam dificuldades no acesso, e 99 não tinham vaga no Ensino Infantil. Entre os adolescentes, seis apresentavam dificuldade para cursar o Ensino Médio.
De acordo com o relatório, a maior parte das violações teve como responsável as mães, em 730 casos, seguido de 378 casos em que os pais foram responsabilizados. Outros 310 casos apontaram as escolas como responsáveis, enquanto 92 ocorrências tiveram os próprios adolescentes como sujeitos.
A atenção aos direitos da criança e do adolescente tem contado com um reforço no município desde julho de 2021, com o levantamento de números que mostram a violência através do Sipia. O conselheiro tutelar Leonides Lavinicki afirma que o sistema ajuda a expor os locais com mais riscos e auxilia tanto na tomada de decisões quanto para qual órgão a demanda será encaminhada. “O sistema tornou mais efetiva a coleta de informações no que se refere aos atendimentos e denúncias”, garantiu o conselheiro. No período de um ano, o documento cadastrou 2.239 pais ou responsáveis no sistema. O banco de dados, que agora conta com 2.296 crianças e adolescentes no cadastro, possibilitou inclusive identificar os bairros que registraram mais ocorrências.
O bairro São Roque, um dos mais populosos do município, aparece com o maior número de ocorrências, com 255 violações de direito entre janeiro a dezembro de 2022. Uma situação preocupante e acompanhada de perto pelo Conselho, que ainda elenca os bairros Vila Nova II, com 217 ocorrências, e Borgo, com 170 casos, como os locais com mais registros de atendimentos.
O conselheiro tutelar revela que o encaminhamento às denúncias que chegam diariamente ao Conselho Tutelar é verificado por um Comitê das Violências criado em Bento Gonçalves com o objetivo de dar continuidade ao trabalho mesmo em tempo de mudanças de gestão. Anteriormente, o atendimento às crianças e adolescentes estava centralizado no Centro de Referência Materno Infantil. Além disso, quando um direito foi violado, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) tem precedência no atendimento, e o conselho aciona também órgãos como a Secretaria da Saúde, o Ministério Público ou a delegacia, de acordo com as características das denúncias.
Lavinicki alerta que os pais e responsáveis precisam estar atentos para preservar a dignidade e os direitos das crianças e adolescentes, sob pena de sofrerem penalidades, agravadas após a aprovação da Lei 14.344/22, conhecida como Lei Henry Borel. Para ele, isso não quer dizer que os pais devem se abster de dar educação ou limite aos filhos, mas precisam encontrar a maneira correta para isso. “Se a família não encontrar uma forma de educar que garanta os direitos da criança, ela será responsabilizada”. Essa responsabilização pode inclusive resultar na retirada da criança do convívio familiar, o que ocorre por determinação judicial, com o objetivo de que os responsáveis sejam orientados para que possam voltar a exercer as suas responsabilidades.
O que é o Sipia
O Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia) é um sistema nacional de registro e tratamento de informação com abrangência nacional, sobre a garantia e defesa dos direitos fundamentais preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado em 1998 para subsidiar a adoção de decisões governamentais nas políticas para crianças e adolescentes, garantindo-lhes acesso à cidadania. Desde lá, estruturou uma base de dados agregados em nível municipal, estadual e nacional e se constitui em uma base única nacional para formulação de políticas públicas no setor. A base do Sipia é o Conselho Tutelar, para o qual se dirigem de imediato as demandas sobre violação ou não atendimento aos direitos assegurados da criança e do adolescente. Em Bento Gonçalves, a adoção ao sistema ocorreu apenas em julho de 2021. Para Lavinicki, o Sipia constitui-se em poderoso instrumento de capacitação para os conselheiros tutelares e para os conselheiros de direitos, contribuindo para a implantação e o adequado funcionamento de ambos e, assim, para a implantação do próprio estatuto.
Os dados do Sipia
Ocorrências por bairros
1º – São Roque – 255
2º – Vila Nova II – 217
3º – Conceição – 205
4º – Borgo – 170
5º – Ouro Verde – 168
6º – Zatt – 167
7º – Universitário – 165
8º – Aparecida – 160
Tipos de ocorrência
Direito fundamental de Convivência familiar e comunitária
1º – Violações a Dignidade / Negligência Familiar 697
2º – Inadequação do Convívio Familiar 216
3º – Privação ou Dificuldade de Convívio Familiar 28
OBS: Referente às violações à dignidade/negligência familiar (697), 320 são de omissão com a educação escolar e formação intelectual, 198 são de omissão no cuidado com a saúde, alimentação e higiene, 160 são de cuidados com a proteção e segurança, e 19 são falta de apoio emocional e psicológico.
Direito Fundamental de Liberdade, Respeito e Dignidade
1º – Violência Física – 139
2º – Violência Sexual – 112
3º – Violência Psicológica – 32
Direito Fundamental de Educação, Cultura, Esporte e Lazer
1º – Inexistência de Ensino Fundamental ou dificuldade no Acesso 155
2º – Ausência de Ensino Infantil ou dificuldade no acesso 99
3º – Inexistência de Ensino Médio ou dificuldade no acessos 06
Relatório de violações por agente violador:
1º – Mãe – 730
2º – Pai – 378
3º – Instituição de ensino – 310
4º – Próprio adolescente – 92
Como denunciar ao Conselho Tutelar
As denúncias podem ser feitas pessoalmente na sede do Conselho Tutelar, na Rua General Vitorino, 173, Bairro São Francisco, pelos pelos telefone (54) 3055-8559 ou telefone de plantão 24h (54) 99159-5744 e pelo serviço Disque 100.