Em minha participação semanal no Jornal da Manhã da Rádio Jovem Pan da Serrã, falei sobre a recente alteração legislativa envolvendo a Lei Maria da Penha (Lei nº 14.550/2023), especialmente ao acrescentar o parágrafo 5° ao artigo 19 da Lei em referência, para dizer que “As medidas de urgência serão concedidas “independente” da tipificação penal da violência, do ajuizamento da ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou registro de boletim de ocorrência”.
Primeiro, vamos entender o que tudo isso significa, traduzido para um linguajar mais acessível:
- independentemente da tipificação penal da violência significa dizer “qualquer que seja o crime”, mesmo aqueles em que, para que haja processo, precisa expressa manifestação do querer da vítima (exemplo: ameaça), o que em direito chamamos de representação;
- independentemente do ajuizamento da ação penal cível implica que a medida urgente de proteção deve ser concedida mesmo que não houver denúncia ou ação judicial cível contra o autor da violência;
- independentemente de haver inquérito policial ou registro de um boletim de ocorrência indica que a medida pode e deve ser concedida com base em qualquer outro elemento diminuto de prova que permita concluir que uma mulher está sento vítima de violência familiar ou de gênero, em qualquer forma de expressão.
A nova legislação tem poucos dias de vigência e as polêmicas já estão aí pipocando para todo o lado. E confesso que olhei para ela com certa desconfiança quanto a sua constitucionalidade e, também, quanto à efetividade das mudanças que ela trouxe. Isso só mudou para mim quando alertada por uma amiga que é Procuradora de Justiça no Estado de Minas Gerais, Regina Duayer – profissional qualificadíssima e atuante nessa área perante o Tribunal de Justiça Mineiro – chamando-me a atenção para a natureza jurídica da Lei Maria da Penha, já que seu caráter é essencialmente protetivo e de assistência às vítimas (e muito pouco penal).
É dizer, seu intento é primeiramente proteger e acolher (assistir) as vítimas, antes de punir o agressor, e é assim que lei deve ser interpretada. Se é assim, estamos de acordo que, em termos de violência doméstica contra a mulher e violência de gênero, precisamos de reforço de proteção? Se nossa resposta for positiva a essa questão, então, nossa a análise deve começar por este aspecto e pelos fundamentos da necessidade de proteção estatal e efetividade.
Em uma Live de Rogério Sanches e Valéria Scarance, ouvi que a alteração legislativa surgiu de uma reivindicação muito antiga de profissionais que atuam no enfrentamento desse tipo específico de violência, justamente pela existência de muitas barreiras legais que impediam a efetividade das medidas protetivas da Lei Maria da Penha que, em seus vários artigos, continha apenas uma conduta que poderia ser compreendida como sancionatória: o descumprimento da medida protetiva imposta. Um desses óbices era a jurisprudência: os Tribunais vinham entendendo que o descumprimento de uma medida protetiva não configurava crime, ou seja, uma postura de estímulo, e não dissuasória, ao agressor no sentido transpor os limites da ordem restritiva e de proteção à vítima.
Sempre fui da opinião que, nesse arenoso terreno da Violência Doméstica contra mulher ou Violência de Gênero (pelo fato de alguém ser mulher e, portanto, por discriminação), uma pedida protetiva não impede a consumação de crimes. No entanto, o que Rogério Sanches e Valéria Scarance colocaram na Live que antes mencionei é que, em regra, tanto em nível mundial, como em nível de Brasil, a mulher que morre e que sofre uma violência mais severa é aquela que não tem em seu favor medida de proteção qualquer.
E, estatisticamente, que, em um Estudo do Ministério Público (que se chama “Raio X do Feminicídio”) restou demonstrado que 97% das mulheres que morreram ou quase morreram vítimas de feminicídio, elas também não tinham medidas protetivas quaisquer em seu favor.
Nesse quadro, é possível dizer que medidas protetivas de urgência potencialmente salvam vidas e que, em bora hora, sobreveio essa alteração legislativa que permite que tais medidas de proteção de urgência não tenham mais prazo de validade (vigoram enquanto permanecer o quadro de violência que determinou o seu deferimento urgente) e que o seu descumprimento passa a ser considerado um crime. Que assim seja!