
A pessoa cuja imagem aparece abaixo é Richard Phillips, alguém que ficou preso, nos Estados Unidos, por 46 anos. Soube disso, acidentalmente, quando acordei, na madrugada, e TV estava ligada no “Investigation Discovery”, exibindo um documentário da história Richard como a mais longa sentença de prisão indevida naquele país.
Fui conferir na rede mundial de computadores e vi que isso realmente aconteceu. Richard Phillips, natural do Estado norte-americano do Michigan, foi condenado, primeiro, por um assalto. É que, em certo dia, em 1972, um daqueles que deveria ser como outro qualquer – pois Phillips o havia passado na Michigan State Fair com sua esposa e suas duas crianças, Rita e Richard Jr., brincando e rindo juntos -, à noite, ele saiu novamente, quando, então, foi detido pela Polícia. Sem que ele soubesse, Richard era procurado como suspeito de assalto à mão armada, ao lado de Richard “Dago” Palombo e Fred Mitchell, um homem também negro que as testemunhas pensavam ser Phillips, pois muito parecidos.
Phillips estava em apuros, porque, enfim, ele era, efetivamente, amigo de Mitchell e não tinha um álibi. Quando chegou a hora do Júri deliberar se Phillips ou Mitchell estavam na cena do crime, os Jurados acreditaram que era Phillips que, assim, foi condenado a sete anos de cadeia.
Ele já se preparava para apelar da decisão, quando sobreveio nova prisão, desta vez, perpétua, pelo homicídio de Gregory Harris, fato ocorrido em Detroit. Na ocasião, Richard tinha 26 anos de idade. Tão logo foi condenado, chamou a mulher e disse: “Sou inocente. Mas não quero nem que você nem meus filhos sofram as humilhações de virem me visitar. Estou me separando de vocês, para que possam seguir as suas vidas”.
Como e por que sobreveio aquela nova prisão?
É curioso: Phillips estava preso, quando, no inverno de 1972, o corpo de Gregory Harris, desaparecido desde a primavera de 1971, foi encontrado em um campo. Dias após a descoberta do corpo de Gregory, Fred Mitchell foi preso por outra acusação de assalto à mão armada e, na esperança de aliviar sua sentença, disse à Polícia que tinha informações sobre os assassinos de Harris.
Ou seja, para receber uma pena menos severa, Mitchell disse à Polícia que Palombo e Phillips cometeram o crime de homicídio contra Gregory Harris, equivale a dizer, a simples palavra de um homem que queria um acordo judicial para eximir-se de sua própria responsabilidade foi o suficiente para as autoridades e para a condenação à prisão perpétua de uma pessoa.
Phillips e Palombo, a estas bases, foram levados a um Tribunal, onde os Jurados, depois de deliberarem por apenas quatro horas, condenaram ambos por assassinato em primeiro grau, tendo-os como autores do homicídio de Gregory Harris.
Preso, Phillips fez de tudo para suportar o sofrimento de uma prisão injusta. Sabia que se livrar de uma condenação indevida dependia de que mantivesse sua sanidade mental e sua disposição para a luta.
Fazia exercícios físicos. Retomou os estudos que abandonara no ensino secundário, concluindo-o. Ingressou na Faculdade e se graduou em Direito. Fez, antes de depois, inúmeros pedidos às Cortes de Justiça, com base em novas provas, para ser submetido a novo julgamento, todos sempre negados, gerando decepção, desespero e indignação.
Para driblar tudo isso, Phillips começou a pintar para não enlouquecer. Mas havia um problema: ele não tinha onde armazenar as telas pintadas. Essa questão foi, então, resolvida, quando Phillips arrumou uma amiga correspondente que, lá pelas tantas, concedeu em quadrar suas telas para ele. Entretanto, sem embargo da pintura e da arte, em permanente dor e sofrimento, Richard Phillips nunca desistiu de lutar por justiça e pela sua liberdade, até porque, ele sabia que, no momento em que o assassinato pelo qual foi condenado ocorreu, ele sequer conhecia o corréu Palombo, o que, aliás, não fez diferença, pois seu advogado não o deixou testemunhar para falar isso no julgamento.
Lembro ter lido que, ao proferir a sentença de Phillips, o Juiz Presidente do Júri teria perguntado a ele se o acusado tinha alguma palavra para as vítimas, ao que Phillips teria dito: “Não necessariamente, Meritíssimo, exceto pelo fato de que eu não sou culpado … então tudo o que posso fazer é apenas… esperar até que algo se desenvolva a meu favor”.
Só muitos anos após, em audiência de apelação de Palombo, este fez uma declaração inesperada a alentar a situação de Richard: contou que, em junho de 1971, foi Fred Mitchell que havia cometido o assassinato de Gregory Harris, fazendo-o sozinho e sem aviso prévio, diante dos olhos de Palombo.
A declaração de Palombo não mencionou Richard Phillips como autor do crime. Ao contrário, foi categórico em afirmar: “Eu não conhecia Phillips até 04 de julho de 1971″, data emblemática, pois 4 de julho foi oito dias após o assassinato Gregory Harris.
Ou seja, Phillips era inocente. Mas isso só foi reconhecido em um passado recente, pois, com a ajuda da Clínica de Inocência do Michigan, Palombo (que morreu, na prisão, de Covid, no ano de 2020) e seu advogado pressionaram para conseguir uma nova audiência para Phillips, e eles tiveram sucesso.
Pasmem que só em 28 de março de 2018, 45 anos depois, o Promotor Kym Worthy exonerou oficialmente Phillips de uma vez por todas. “A justiça está realmente sendo feita hoje”, disse.
Uma vida inteira na cadeia indevidamente… Como reparar e recuperar o tempo e tudo o mais que ele perdeu? Recebeu uma indenização vultosa, mas não há correspondente indenizável neste mundo, pois a vida de um homem não tem preço e não pode ser quantificada em cifras.
A história de Richard Phillips me prendeu na madrugada não apenas porque, em proporções muito, muito, muito e muito menores, mas não com menos sofrimento pessoal e familiar, conheço um caso de uma pessoa que está sendo mantida presa indevidamente, sem que ninguém, ninguém, se detenha para examinar, com o devido zelo, o caso dela. Lembrei, rapidamente, que, de uma instância de jurisdição para outra, uma leitura “atenciosa”, aumentou, na imputação, incluindo um coautor e uma crime, evidenciando uma leitura pró-forma, uma responsabilidade de tinta e papel, daquelas que faz de conta que lê e examina e acaba reproduzindo decisão de outros, frases prontas, sem uma efetiva análise acurada de caso que envolve a liberdade da pessoa sem a qual a própria vida, em sentido concreto, inexiste.
Porém, no triste episódio de Richard Phillips, outra coisa me deteve na e chamou atenção em sua história: em Detroit, existe o Wayne County Prosecutor’s Office (WCPO), um Escritório de Promotores de Justiça, chefiados por um Procurador-Geral (eleito pela sociedade), voltado, obviamente, à salvaguarda da comunidade, à persecução criminal e à defesa das vítimas e familiares, exercendo atividade estatal de invulgar importância, como o Ministério Público no Brasil.
Mas o WCPO tem – e isso é o que precisamente chamou minha atenção – uma unidade voltada a revisar e a reavaliar eventuais casos de condenações indevidas. É possível conferir isso no Website Clique aqui
Você não leu errado, não: o Ministério Público acima mencionado conta com uma unidade encarregada de revisar e reavaliar casos de possível erro judiciário, porque acusou indevidamente e obteve êxito em obter uma condenação injusta.
É curiosa e, ao mesmo tempo, bem-vinda a mim essa ideia que tem por pressuposto o reconhecimento da falibilidade humana que, no caso Richard Phillips, dele suprimiu a liberdade por mais da metade de sua vida. Isso não aconteceu senão pelo pedido de condenação do Promotor de Justiça do caso.
No Brasil, eu sei, por experiência, que a imensa maioria daqueles que foram condenados, não o foram indevidamente. Não temos cadeias povoadas por anjos, ainda mais com esse sistema penal e processual penal tão propício à impunidade. Aliás, há presos que eu, pessoalmente, gostaria que nunca mais saíssem da prisão, porque têm forma humana e alma vazia de humanidade.
Por outro lado, não ignoro que há muitos e muitos presos indevidamente, assim como Promotores de Acusação (e não de Justiça) e Juízes que, embora não sendo a totalidade, se acreditam infalíveis, cujo ego não lhes permitiria jamais admitir como admissível e necessário uma unidade de revisão de pedidos de condenação erráticos, quando não sustentados para aumentar um escore de êxitos em condenações de que possam, adiante, se regozijar em rodas de amigos. Os que promovem justiça, os comprometidos com ela, não agem assim.
Sei que não existe, no Brasil, a possibilidade de revisão criminal para o Ministério Público. Mas a história de Richard Phillips mostra que, se há um vácuo no Sistema de Justiça, em muitos casos, para consagrar a impunidade, ele também existe no que tange a erros terríveis como aquele a que foi submetido Phillips, um vácuo que precisa ser preenchido. Um bom exemplo é o do WCPO, uma unidade no seio do próprio Ministério Público, especializada e com mecanismos internos de defesa da injustiça de julgamentos já findos ou em andamento, para impedir a injustiça (não é porque você errou que precisa continuar errando) e reverter casos de condenações injustas.