EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

Educar para não discriminar e como a escola pode ser aliada no combate ao racismo; conheça ações na Serra Gaúcha

A escola, enquanto espaço de formação e de socialização, pode ser uma aliada fundamental nesse processo de desconstrução das desigualdades no ambiente escolar. O 3 de julho é o Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial

Educar para não discriminar: como a escola pode ser aliada no combate ao racismo. Foto Reprodução Freepik.
Educar para não discriminar: como a escola pode ser aliada no combate ao racismo. Foto Reprodução Freepik.

No Brasil, a discriminação racial se mantém como um problema estrutural que afeta a sociedade. Um estudo recente do Ministério da Igualdade Racial, realizado em parceria com as organizações Vital Strategies e Umane, evidencia o peso que a raça tem nas experiências de discriminação vivenciadas pela população brasileira.

De acordo com a pesquisa repercutida pelo secretário de Políticas de Ações Afirmativas Combate e Superação do Racismo, Tiago Santana, em publicação alusiva ao Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, celebrado nesta quinta-feira (03) no Portal do Governo Federal, 84% das pessoas que se identificam como pretas afirmam já ter sofrido algum tipo de discriminação ao longo de suas vidas.

O estudo também destaca um dado ainda mais alarmante: as mulheres pretas enfrentam uma carga desigual de discriminação, com 72% delas relatando episódios de preconceito em decorrência de múltiplos fatores, incluindo raça e gênero. Esses números são um reflexo da urgência em garantir políticas públicas que atuem diretamente na redução das desigualdades e promovam a equidade racial no país.

Atualmente, a legislação reserva 30% das vagas em concursos públicos e processos seletivos simplificados na Administração Pública Federal para pessoas pretas, pardas, indígenas e quilombolas. Essa ação representa um passo significativo na promoção da inclusão e na tentativa de corrigir as desigualdades históricas que marcam a sociedade brasileira. Isso, somado a outras políticas, bem como a mecanismos de escuta da população preta e parda, autorreconhecida e autorrepresentada, colabora para o combate a discriminação, mas ainda está longe de ser ideal.

A discriminação racial não se manifesta apenas de maneira explícita. Ela se insere de forma mais sutil nas práticas cotidianas, atravessando instituições, como as escolas, e se refletindo na linguagem e nas normas estabelecidas. A forma como a história é contada, os conteúdos abordados nas aulas, as representações nas bibliotecas e nos materiais pedagógicos, entre outros aspectos, muitas vezes excluem ou distorcem as vivências de uma parte significativa da população, tornando ainda mais difícil a desconstrução das desigualdades no ambiente escolar.

A escola, enquanto espaço de formação e de socialização, pode ser uma aliada fundamental nesse processo, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todos.

A forma como a história é contada, conteúdos abordados, materiais pedagógicos, etc., excluem ou distorcem as vivências de uma parte da população e aumenta desigualdades no ambiente escolar. Foto Reprodução Freepik.

Relações Étnico-Raciais na Escola

A professora e pesquisadora Joelma Couto Rosa desenvolveu a Pesquisa sobre Relações Étnico-Raciais na Escola, realizada em Caxias do Sul, que investigou as vivências de estudantes negros em uma escola que, apesar de situada em uma região com uma significativa população negra, apresentou, ao longo do estudo, uma estrutura educacional que frequentemente negligencia no que diz respeito as questões raciais. Ou seja, que aponta inúmeros pontos de atenção no que diz respeito ao tema.

O estudo, conduzido por meio da metodologia das escrevivências, teve como objetivo entender as experiências desses estudantes no contexto escolar, suas relações com o ambiente educacional e como a falta de representatividade impacta seu desenvolvimento acadêmico e pessoal. A coleta de dados foi realizada por meio de cartas trocadas entre a pesquisadora Joelma e 32 estudantes negros, o que permitiu um espaço seguro para os estudantes expressarem suas percepções, experiências de discriminação e os efeitos do racismo no seu cotidiano escolar.

Segundo Joelma, a análise dessas escrevivências em uma cultura escolar, predominantemente branca, apontou o impacto da representatividade racial na formação e autoestima dos estudantes. Ao se perceberem representados em uma figura docente que reflete sua própria identidade racial, muitos estudantes sentiram-se mais à vontade para se expressar e discutir temas relacionados à negritude e o próprio fortalecimento da identidade racial entre os alunos.

“Então, algumas cartas revelaram atitudes de empoderamento dos estudantes, outras apresentaram importantes movimentos autotransformativos em relação à identidade racial desses adolescentes, mas a maioria delas trouxeram denúncias sobre a ocorrência de racismo. E aí, então, eu organizei essas cartas escrevivências em três categorias. Denúncias, empoderamento e autotransformação como uma estratégia de análise mesmo. E aí, o resultado da pesquisa eu também apresento em formato de cartas para a minha criança, que sofria lá no ambiente escolar quando era pequena”, descreve.

Joelma em encontro do treinamento sobre Educação das Relações Étnico-raciais, em Nova Prata. Foto: Arquivo pessoal.

Ela ainda traz a sensibilização dos estudantes sobre as questões raciais, o estímulo à reflexão sobre a discriminação sistêmica e as desigualdades raciais, além do reconhecimento do impacto dessas práticas nas trajetórias acadêmicas e pessoais.

A pesquisadora ainda pontua a chegada de imigrantes venezuelanos e outros grupos radicalizados em escolas do município e região como fenômeno que aumenta a necessidade de inclusão e integração de diferentes grupos, sem perder de vista as especificidades raciais e culturais de cada um.

Em termos de mobilização e denúncia, Joelma comenta que pesquisa indicou situações de discriminação silenciadas, mas que puderam ser faladas a partir do momento em que os estudantes sentiram-se mais acolhidos e ouvidos, além da possibilidade de um enfrentamento coletivo a essas situações.

E por fim, destaca que a pesquisa revelou que a ausência de professores negros na escola foi um fator de exclusão para os estudantes. Segundo ela, a presença de um ou mais professores negros seria um passo significativo para a redução do racismo estrutural e para a criação de um ambiente mais acolhedor para os alunos negros.

“Então, eu convido e ao mesmo tempo convoco os gestores educacionais desses municípios a olhar para o seu contexto e buscar referências negra. Tirar as lentes que não deixam enxergar muitas vezes essas presenças, para que eles olhem para o seu território e para que eles olhem também para o pertencimento étnico-racial das crianças e dos adolescentes que estão nessa rede de ensino. A partir das categorias do IBGE, porque muitos não sabem que são negros, não se enxergam como negros, principalmente nessa região que as pessoas negras são invisibilizadas, que as pessoas negras não são vistas como negras e que, por vezes, as próprias pessoas negras para sobreviverem aqui, acabam negando a sua identidade. A partir da autodeclaração étnico-racial, tanto das crianças, dos estudantes, quanto dos professores: o que é ser negro”, conclui.

A pesquisa de Joelma Couto Rosa ainda revelou que a ausência de professores negros na escola foi um fator de exclusão para os estudantes. Foto Reprodução Freepik.

Desafios da implementação de leis, especialmente em escolas públicas

A necessidade de políticas públicas mais eficazes voltadas à equidade racial dentro da educação também foi evidenciado. A implementação de iniciativas como a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq), ao qual Joelma atua enquanto agente desde 2024, é um exemplo daquilo que deve ser fomentado.

A Pneerq tem o objetivo de implementar ações e programas educacionais voltados à superação das desigualdades étnico-raciais e do racismo nos ambientes de ensino, bem como à promoção da política educacional para a população quilombola. O público prioritário é formado por gestores, professores, funcionários e estudantes, abrangendo toda a comunidade escolar.

Na região Nordeste do Estado, onde Joelma atua, dos 14 municípios compreendidos, apenas Antônio Prado, Nova Pádua e Nova Roma do Sul não aderiram.

Outra frente de atuação que Joelma também faz parte é o núcleo permanente Qualificar a Educação para as Relações Étnico-Raciais (QuERER), que foi criado na Secretaria Municipal de Educação de Caxias do Sul, em 2021, com o objetivo de implementar ações relacionadas à educação étnico-racial, a partir da legislação brasileira que exige a inclusão da história e cultura da África e dos povos indígenas nos currículos escolares.

A lei 10.639, em vigor desde 2003, estabelece a obrigatoriedade do ensino sobre esses temas, mas a sua efetiva implementação nas escolas tem enfrentado desafios. Muitas escolas ainda tratam o tema de forma pontual, sem uma integração contínua nos currículos escolares.
A educação básica no município apresenta desigualdades significativas para a população negra, com índices mais altos de evasão escolar, dificuldades no acesso à educação infantil e desempenho inferior em avaliações externas, conforme explica a professora Fernanda Bertoldo, que também integra o QuERER.

Segundo ela, essa realidade tem gerado a necessidade de ações mais estruturadas para combater essas disparidades. Assim, o Núcleo atua na formação contínua de professores e gestores, com o objetivo de promover um currículo mais inclusivo e representativo, que aborde as questões raciais de maneira transversal e constante, por meio de formação de professores e a promoção de grupos de estudos com agentes educacionais.

A presença de um ou mais professores negros seria um passo significativo para a redução do racismo estrutural e criação de um ambiente mais acolhedor para os alunos negros. Foto Reprodução Freepik.

Educação antirracista para combater a discriminação racial

Conforme Fernanda, essas formações buscam desenvolver identificar a presença e as necessidades da população negra e indígena nas escolas e a criação de ações pedagógicas que integrem as culturas africana e indígena ao cotidiano escolar, considerando as especificidades de cada território.

A resistência de educadores e gestores em reconhecer o racismo estrutural dentro das escolas e a dificuldade em lidar com casos de discriminação, especialmente os mais sutis, são obstáculos recorrentes.

“Quando, por exemplo, num jogo de futebol, um jogador é chamado de macaco, aquilo fica muito evidente, mas em outras manifestações isso acaba não aparecendo de uma forma tão, digamos assim, robusta. Então, quando, por exemplo, um aluno adentra no espaço da escola e não se sente confortável lá porque ninguém quer sentar ao lado dele para fazer um trabalho, a gente não consegue nomear isso como ato racista”, explica.

Então, de acordo com Fernanda, a grande dificuldade de trabalhar com isso é a falta de condução que nós temos enquanto sociedade de olhar para essa complexidade que está posta no contexto de escola e analisar isso que está sendo produzido como, de fato, uma violência.

Neste sentido, o aproveitamento de verbas públicas, angariadas por meio de políticas estabelecidas podem colaborar para esse caminho, já que viabilizam a execução de diferentes ações desse teor. Ou seja, a promoção de iniciativas que visam o debate amplo e plural sobre o tema a fim de aproximá-lo das pessoas para que elas identifiquem situações, denunciem problemas e exijam o cumprimento de direitos assegurados a todos pela Constituição.

Apesar das dificuldades, a escola ainda é vista como um espaço potencial de transformação. A implementação de conteúdos étnico-raciais nas escolas é um passo importante para desconstruir os estigmas raciais desde a infância, promovendo uma educação mais justa e igualitária, essencial para a formação de uma sociedade mais inclusiva, e, principalmente, participativa de fato.