O prefeito de Muçum/RS, no Vale do Taquari, uma das cidades mais atingidas pelas enchentes, enviou um ofício intitulado “Carta Aberta ao Presidente da República”. No documento, Mateus Giovanoni Trojan (MDB), 29 anos, relata que o Município, que tinha pouco mais de cinco mil habitantes antes das enchentes, corre o risco de deixar de existir e dá seis orientações para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Salve nossa existência! Muçum respira por aparelhos na UTI, e é um paciente em estado grave! Essa é a mesma realidade de outras cidades atingidas novamente. Cidades que, em um bom percentual, precisam ser remanejadas, mudadas de lugar. Como fazer isso? Recursos!”, escreve no item 5, cujo título é: “Salve nossos municípios”.
O prefeito começa a carta dizendo que diverge de Lula em diversos aspectos ideológicos, mas que o manifesto é de caráter técnico. Em seguida, ele faz seis apelos, com os tópicos: “Desburocratize, Salve o Agronegócio, Salve as Famílias, Salve a Economia, Salve nossos Municípios e Salve o Rio Grande do Sul.
A série de sugestões vai desde processos mais rápidos de liberação de recursos, empréstimos a fundo perdido, crédito rural, auxílio emergencial para famílias, créditos imobiliários via Caixa Econômica Federal (CEF), suspensão da dívida do estado e fomento da produção local.
Mateus Trojan conversou com a reportagem do Leouve e garantiu que tornar a carta pública foi a última alternativa. “Eu quero deixar claro que não fiz este documento com a intenção de publicá-lo de imediato. A primeira intenção era entregar nas mãos do presidente ou de sua assessoria. Como por algumas vezes foi marcada a vinda da assessoria dele para Muçum e isso não se concretizou, a alternativa for tornar a carta pública”, disse.
O prefeito conta que os tópicos citados na carta foram estabelecidos a partir de necessidades percebidas com a enchente do ano passado e que não foram atendidas.
“Esses tópicos não são meus. Eles foram discutidos com a sociedade, que foram observados com os eventos de 2023, daquilo que não fomos atendidos e que são necessidades muito nítidas para nós que ou serão atendidas desta forma ou infelizmente não teremos condições de nos reestabelecer, de conseguir reagir. Nós teremos empresas grandes fechando e outras situações graves acontecendo”, garante.
Mais de 30% da cidade precisa mudar de lugar
O prefeito contou que mais de mil pessoas seguem fora de suas residências no Município. Ele disse que, desde a inundação de 2023, a proibição de construções nas áreas inundáveis tem sido colocada em prática, mas que agora isso será intensificado. Essa região corresponde a 30% da área urbana no Município.
“É até assustador falar nestes termos, mas, de fato, é o que nós precisaremos buscar. Uma parte da cidade terá que ser realocada para áreas que não corram riscos de inundação ou até deslizamentos”. Segundo o prefeito, a saída definitiva de moradores da cidade já é grande e pode ser ainda maior caso a troca do local não seja feita.
“É um processo de médio e longo prazo, que envolve uma série de fatores. Tem toda a questão de expansão urbanística, desapropriação de áreas de terra, negociações pra gente conseguir acessos para conseguir fazer terraplanagens, supressão de vegetação, que também depende de licenciamentos ambientais. Isso vai ter que ser uma política pública permanente”, projeta.
Movimento de empresários capta recursos
Foi criado um movimento chamado Recupera Muçum para centralizar a captação dos recursos de doações e ajuda de municípios que “adotaram” a cidade. Os valores serão destinados para a expansão urbanística e realocação da parte da cidade atingida. A chave do PIX para doações é: [email protected]
“A gente sugere para que os municípios e entidades foquem em nos ajudar a captar recursos para esse fundo, que é coordenado por empresários. A prefeitura é somente uma parceira, uma alavanca nesse processo, até para facilitar depois na execução desses recursos, para fazer eles chegarem onde tem que chegar para permitir que as pessoas que não querem sair de Muçum permaneçam, finalizou.
Confira a entrevista completa do prefeito:
Confira a carta aberta:
Muçum/RS, 14 de maio de 2024.
Of. nº 094/2024
A/C
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
BRASÍLIA/DF
CARTA ABERTA AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Presidente Lula. Divergimos ideologicamente em vários aspectos, mas esse manifesto não é de cunho político/ideológico. É, de certa forma, técnico. O Rio Grande do Sul passa por sua maior catástrofe natural, onde vidas ainda estão sendo salvas e cidades submergem às águas. E, embora eu “esteja” prefeito de Muçum, uma cidade de menos de 5 mil habitantes, a experiência e bagagem das tragédias naturais de 2023 me permitem manifestar algumas pontuações que julgo relevantes, nesta carta aberta, observando o que deu certo, mas apontando o que não funcionou ou deve melhorar, em seis tópicos:
1) Desburocratize. Os processos precisam ser céleres e os recursos têm que chegar na ponta mais rapidamente, para que as resoluções também atinjam as pessoas que realmente precisam. A sistemática da Secretaria da Defesa Civil Nacional, em termos de liberação de recursos, já segue essa linha, mas em outros setores, os recursos fundo a fundo, livres, facilitam para que os municípios possam atender a sua real demanda, que muitas vezes, é bastante diferente entre um local e outro. Podem ser executados com um incremento de uma parcela adicional do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) ou repasse direto com crédito extraordinário, especialmente para os municípios destruídos em 2023 e novamente agora;
2) Salve o agronegócio. Desde grandes produções primárias, até os pequenos produtores, da agricultura familiar, que tiveram suas terras e propriedades arrasadas mais uma vez. Antes, já enfrentavam difíceis anos de estiagem. Agora, além das lavouras, estradas e acessos, perderam galpões, maquinários, e, muitos, suas próprias casas. As políticas para este público precisam ser em formato de crédito rural a fundo perdido, permitindo uma reestruturação verdadeira, sem endividamento em massa. Lembro que já existem dívidas contraídas como forma de custeio e investimento nas últimas safras, que, até então, não foram anistiadas. Além, claro, de benefícios já anunciados – como as residências rurais, que ainda precisam otimizar sua proposição;
3) Salve as famílias. Todas elas. Da extrema pobreza à classe média/alta, pois não existe propriedade atingida que não tenha sido duramente desvalorizada ou gerado prejuízos gigantes. Especialmente as atingidas de forma reincidente, em 2023 e 2024. Se faz necessário aportar recursos a fundo perdido, com um auxílio no formato do “auxílio emergencial” da pandemia, e também com a execução de programas já previstos na estrutura da Caixa Econômica Federal que preveem a destinação de recursos para reformas de casas e propriedades que não foram destruídas, mas precisam ser reformadas. Os programas estão formatados, só dependem de orçamento;
4) Salve a economia. Salve as empresas. Todas elas. De pequeno, médio e grande porte. E de novo, principalmente, as reincidentes. Como um empresário que já esgotou sua capacidade de endividamento vai, novamente, acessar linhas de crédito? Como empresários, que não têm condições de sair em curto prazo das áreas de inundação, terão ânimo para reinvestir? Como manterão os clientes e pagarão os fornecedores? Execute, presidente, linhas de crédito a JURO ZERO (mas juro zero de verdade, dessa vez). E, também, aquele programa que tanto martelei lá em setembro de 2023, de subsídio aos salários. Desafoga as empresas na proporção do número de empregados, e ao mesmo tempo, preserva os empregos, a renda das famílias dos trabalhadores. Funcionou na pandemia. Vai funcionar agora também;
5) Salve nossos municípios. Salve nossa existência! Muçum respira por aparelhos na UTI, e é um paciente em estado grave! Essa é a mesma realidade de outras cidades atingidas novamente. Cidades que, em um bom percentual, precisam ser remanejadas, mudadas de lugar. Como fazer isso? Recursos! Para as casas? Também! Esses, justiça seja feita, já são contemplados nos programas habitacionais. Mas, também, recursos para desapropriar áreas de terra, para construir acessos a essas áreas, para promover a infraestrutura adequada e os serviços essenciais. Para quem tem direito porque perdeu casas, mas também para quem não quer morar mais em área de inundação, e quem sabe, pode recomeçar com um novo terreno sem abandonar a cidade. Outra opção é o crédito habitacional, podendo ser utilizado em loteamentos privados, com a condicionante de ser no próprio município, evitando a evasão da população;
6) Salve o Rio Grande do Sul. Salve o povo gaúcho! A articulação para suspender a cobrança da dívida do Estado com a União já é um grande passo. Mas outras medidas, como recursos para recuperação logística e de infraestrutura, e fomento aos setores produtivos gerais da nossa terra, também se fazem fundamentais. Muito provavelmente, o Brasil nunca viu tamanho colapso estrutural em sua história. Certamente, o Governo do Estado não terá condições de arcar com todos esses investimentos. Lembro: enviamos a Brasília muito mais impostos do que recebemos. Nossa produção econômica é fundamental na engrenagem do orçamento da União. Se não houver recuperação rápida, esse impacto será significativo à Nação nos próximos anos.
Contamos com o Congresso, contamos com o Judiciário, contamos com a iniciativa privada. Mas Lula, Presidente da República eleito pela maioria dos brasileiros: está em tuas mãos agregar essas sugestões a todas as ações que já estão sendo tomadas. Pois já foi muito difícil “respirar”, mesmo que por aparelhos, depois dos desastres de 2023. Se as políticas forem as mesmas, dessa vez… não haverá mais superação.
Estimando a verdadeira consideração a essas sugestões, aguardo encaminhamento.
Atenciosamente,
MATEUS GIOVANONI TROJAN
PREFEITO DE MUÇUM